Neste 25 de Junho Moçambique comemora meio século. Eu devia - e tinha isso planeado - hoje aqui publicar um texto analítico, ensaístico. Mas adio. Pois ponho-me…
Em 1990, quando acabei a tropa - que então era obrigatória, e saíra-me “em sortes” -, através do na época fulgurante “Expresso Emprego” logo encontrei um trabalho: feito “director”, com belíssimo ordenado (os tempos eram assim), o usufruto de um carro e também de um apartamento fronteiro ao mar, em São Pedro de Moel. Numa empresa de roupas! E todos poderão perceber o que passou na cabeça daquele pós-mancebo, assim feito bem-posto, alcandorado num ambiente obviamente pejado do então celebrado “mulherio”.
Mas recusei o emprego. Pois queria fazer um “mestrado” - coisa então não universal. Não exactamente em Antropologia, que me fora ensinada de modo a considerá-la inócua. Mas não tanto como a que vim encontrar em Portugal três décadas depois, já de regresso ao país, nos traumas logo sofridos diante de um catedrático director a escrever “sou feminista” e “gosto muito de levar no cu”. Ou após ter eu perguntado se poderia falar num seminário - passara quase 15 anos a co-organizá-los em Maputo… - me terem negado pois “Não tens doutoramento”. Para uns meses depois abrirem uma linha secundária de “seminários” e me dizerem “nestes já podes falar”, e a minha vez seria na sequência de um “colega” cuja apresentação era “a importância da troca de fluidos nas orgias homossexuais de Lisboa”. “Foda-se”, clamava eu depois, bebericando com um camarada amigo irmão, grande antropólogo, estrangeiro e homossexual, que se ria dizendo-me “voyeurs, são voyeurs, Zé Teixeira” (sempre enfatiza o meu nome no seu peculiar português). “Estive há pouco num congresso” - se cá se alhures já não recordo - “onde havia um painel sobre a etnografia do fisting”, completava-se, e eu a rir-me, desarvorado. “Sabes o que é o fisting?”, espantava-se ele, e eu já de gargalhada finda, “o fisting e o californian rush?, meu querido… A gente lia o Rock & Folk nos inícios dos 1980s”, sobre as maluquices pré-Sida em Frisco… Gente barrasca, e - pior - anacrónica, disciplina de merda, aquela que nos rodeava, culminávamos nós… Mas isso nem sequer foi o pior. Pois anos depois, na despedida de um mestre de geração, diante de uma mole apoiante, culminava ele - apoiado em literatura missionária de há imensas décadas - com louvores feministas às sociedade matrilineares do Niassa. “O que se passa contigo?”, perguntavam horas depois os dois colegas amigos que comigo jantavam. “Devia ter estudado Economia”, respondi, “pois até os melhores de nós só dizem merda. E ninguém os critica”, escorropichava eu o tinto barato, em genuíno pico depressivo. Desses que me acontecem, demasiados. Assim percebendo, como nunca, o que teriam sentido os verdadeiros retornados, lá nos anos 1970s, chegando aqui diante da tétrica mediocridade pátria.
Divago, pois o relevante é que muito antes disto fui fazer um mestrado em Estudos Africanos, então o primeiro em Portugal, tão velho que já vou... Prometiam bolsas para trabalhos de terreno, na África “lusófona” pois então. No início dos 1990s a Guiné-Bissau era um pacífico “mosaico étnico” e constava que atrás de qualquer tufo de capim residia um antropólogo “ocidental”. Assim sítio a evitar. E Angola regurgitava Bicesse. Eu optei por Moçambique: tinha a ideia fixa de estudar algo na “cintura matrilinear de África”: ainda não entendera (como o poderia ter entendido?) não ser isso verdadeiramente significante. O grande Christian Geffray (detestado pelos comunistas moçambicanos e pelos importados da linha III Internacional - ele era mais da IV…) vasculhara Nampula. Por isso segui para Norte, rumo ao Cabo Delgado. Procurei uma aldeia com água potável - e estrada para o caso de cair com malária. Fiquei em N’ropa, a aldeia de Hi-Namwenda (Dom Namwenda, em português) - o qual ladeio na tão típica fotografia que encima o postal. Ali o velho Namwenda e o seu genro José da Cruz, que ficou meu nyenye (mano), ensinaram-me tudo o que um antropólogo precisa de saber num trabalho de terreno: não ser simpático, ser ele-mesmo. O resto da bibliografia “metodológica” é mero lixo. Ou, vá lá, entretenimento académico.
Voltei a casa 6 meses depois. Na Portela estava a minha ex-namorada (zangara-se comigo por motivos apenas dela). E o meu pai. Aproximei-me deles até dois palmos, eles buscando-me. Que as mulheres nos esqueçam é o esperado, a sina. Agora o meu pai? “Então pai?”, afirmei até ofendido. Estupefacto ficou, eu de barba missionária e menos 26 quilos… Pois ainda que o nosso miserável orientador académico nos tivesse boicotado as bolsas de investigação - na época ainda não se falava de “assédio”, muito menos do “laboral” - eu aguentara-me o previsto semestre, mesmo sem dinheiro. E a população praticamente nada tinha para comer - culpa do “ocidente” diriam, dirão, os “intelectuais” de agora... Mesmo assim ainda hoje resmungo com o Camarada Pimentel não me ter reconhecido quando aportei na Portela. Dois ou três meses depois, num jantar de amigos, o Zé Guilherme - que vivera e cruzara Moçambique nos 80s, com o pai cooperante e que lá morrera, num ápice - exigiu-me, na mais arreigada mundivisão olivalense, “ouve lá, já voltaste há meses, tira esse brilho do olhar!!!!” Um evidente “atina”, “conforma-te”. Ou, se fosse na tonta tropa, “Sentido!”.
Uns tempos depois fui trabalhar para a Comissão dos Descobrimentos. Tive a sorte de conhecer, trabalhar e desde então ir lendo António Manuel Hespanha, que foi um excelente Comissário-Geral. E que era um grande intelectual - tão o era que estes esquerdistas “póscoloniais” ditos “decoloniais” de agora fazem por esquecê-lo. O “Hespanha” (como fazia questão que nós lhe chamássemos, sem títulos ou ademanes) mandou-me a Moçambique, a propósito de umas conferências mas, de facto, para fazer um plano de comemorações dos 500 anos de contacto português com aquela região. Eu trouxe umas ideias. Entre as quais financiar este Maputo, Desenrascar a Vida, o álbum de fotografias organizado pelo Nelson Saúte, intermediação minha que foi, sem dúvida, o meu contributo para aquele país. E que marcou a minha verdadeira paixão pela cidade.
Nessa viagem o José Soares Martins - que como historiador assinava José Capela, e sobre o qual escrevi o texto do qual mais me orgulho, e cuja obra, já agora, vale bem mais do que a tralha conjunta desses tais “póscoloniais” agora ditos “decoloniais” que tanto vigoram por esses “corredores” afora - disse-me, sem rodeios, que eu tinha de ir para lá trabalhar. E organizou isso.
E assim aconteceu. Para Moçambique segui nos finais de XX. Pouco depois foi a Inês, que eu amei o melhor que pude e soube, apesar de isso lhe ter sido insuficiente. E fizemos a Carolina, que ali bem medrou. Comendo ela xima, matapa, mboa, cacana até, “senhora, a Carolina come tudo, e muito…” fomos informados nos seus 3 anos! Foram 18 anos lá. Nisso, como sempre digo, tive diarreias sanguinolentas em 9 das 10 províncias - exceptuo deste rol a província Maputo-cidade, demasiado urbana para a dizer eu aqui “província”. (Após voltar, “retornado” pós-colonial - com hífen, pois jamais teórico - sarcasmava com alguns colegas: “em Lisboa há não sei quantos cursos de antropologia, vários mestrados de “estudos africanos”, mas ninguém me convida para uma sessão gratuita, a troco de um café, para falar sobre como fazer uma entrevista com um grupo focal - algo que aqui ninguém ensina a fazer - no campo quando estás com uma diarreia sanguinolenta”. Sim, posso parecer ressabiado quando escrevo isto. Mas não estou, apenas sigo realista.)
Que trouxe eu de Moçambique, desses 18 anos? Memórias fotográficas, mais do que tudo. Esta primeira, do Ricardo Rangel, sou eu, fui eu durante esses todos anos, espreitando pelo caniço, tentando (conseguindo?) perceber o que me circundava….
(Ricardo Rangel, Apetecido Quintal de Caniço, 1961, publicada no Pão Nosso de Cada Noite, Marimbique, 2004)
(Kok Nam, Aldeia Comunal, publicada em Kok Nam, o Homem por Detrás da Câmara, Escola Portuguesa de Moçambique, 2010)
(Sérgio Santimano, Nacalange, Niassa Oriental, 2001, publicada em Terra Incógnita, 2006)
E depois isto, o “mato”, como lá chamam ao campo. A impressionista “aldeia comunal” do grande Kok Nam, belo amigo, maravilhosa companhia; a mulher no seu celeiro do Sérgio Santimano. A todos eles disse isso, “o meu Moçambique são três fotografias” e enunciava-as. O Kok, que a expunha, logo disse “não gastes dinheiro, eu dou-ta”. E de seguida fui lá a casa várias vezes. Mas ele já estava doente, não quis parecer qual abutre, nunca lha pedi, ficávamos todos a conversar sobre a vida comezinha (e o Sporting, claro). Depois morreu e era o que faltava pedi-la ao seu amigo Alves Gomes, meu vizinho paredes-meias, que tratava do legado. Também ao Rangel, que se riu quando lhe disse “aquele gajo era eu”, não lhe carreguei a foto. Nem ao Sérgio, que a expunha no Museu Nacional de Arte e que logo me disse “fica guardada para ti”, mas que não recolhi, devido a uma qualquer confusão com os funcionários da casa… Pois para quê trazê-las?, tê-las?, se estão tão cá dentro de mim. São elas, estas, repito, o meu Moçambique. Estas fotos e mais algumas pessoas, meu mano Ídasse, comadre Ana Magaia, mais um punhado de pessoas, algumas que já cá não estão, até outras que se afastaram (“mea maxima culpa”, respondo quando outrem me pergunta o que se terá passado para tamanho esfriamento).
Que trouxe eu de Moçambique?, insisto-me… Eu sou português, nisso apaixonado. Mas gosto, também amo, Moçambique. Qual amante, quase como se isso fosse infidelidade. Mas não o é. Difícil de entender para alguns: há vinte anos, no início do bloguismo, vários “retornados” - então ainda vivos - caíam-me em cima, até anacrónicos, invectivando-me de “comunista” por lá viver. Agora outros, já não os “retornados” mas também estes ainda vivos, surgem-me por vezes chamando-me reaccionário - “fascista petulante” chamava-me há pouco um afamado jornalista local, embrenhado nas suas dificuldades identitárias.
Que trouxe eu de Moçambique? Livros, algum saber, uma dúzia de peças. E a certeza de que lá tentei ser o que um dia o refinadíssimo Mateus Katupha, então ministro da Cultura, me ensinou: “aqui vocês são cunhados”. Ou seja - e é necessário um antropólogo para explicar (pois Katupha é um macua, de zona de tradição matrilinear e matrilocal) - somos gente que vai viver em terra alheia.
E foi isso que tentei ser. Um “cunhado” em país independente. País carregado de defeitos e qualidades. Belezas e fealdades. Independente!
Há dias, especialmente quando estou mais triste, nos quais muito me apetece voltar a Moçambique. Ir até à Ilha, pausado. A Pemba, claro. Regressar à maravilhosa e esconsa Angoche. E por aí afora. E há dias piores - ou em que carrego mais no uísque - nos quais constato ser o meu maior anseio apenas o de morrer em dia de chuva intensa no matope (lama) vermelho, lá no Cabo Delgado.
Mas nos outros dias, na maioria deles, não trato disso. Apenas penso que tive uma boa vida, até belíssima. A (muito) melhor parte dela em Moçambique. E murmuro asante, kanimambo. Mas mais koshukuro. (Vá lá, também obrigado). E nesses dias, mais melhores, recordo isto: estava na província de Nampula num trabalho qualquer, ao fim do dia consegui chegar até à rede telefónica. Logo telefonei ao Nelson, nesse dia editor, para que me passasse ao Ricardo, que estava no lançamento do seu ansiado e já tão lendário Pão Nosso de Cada Noite. Saudei-o, em modo breve. Dias depois fui ter com ele para que recolher o meu exemplar. E, diante dele, li isto. Comovi-me, mesmo. Com voz turva agradeci-lhe, ao verdadeiro mestre, “obrigado pela condecoração, Ricardo”.
Pois o que trouxe eu de Moçambique? O Ricardo Rangel deu-me a cidadania honorária… Que mais poderia eu querer?
Porque nem todas as notificações são… notadas pelos subscritores, aqui deixo ligação a um postal com alguma relação com este:
50 livros para os 50 anos de Moçambique
Daqui a duas semanas celebrar-se-á o cinquentenário da independência de Moçambique. Tenho esta forma de anunciar a efeméride: elenco 50 livros sobre o país, de autores nacionais e estrangeiros. Não me arrogo ao altaneiro estatuto de “crítico”, seleccionando os “melhores”, estabelecendo um qualquer cânone. Escolho 50 - nisso amputando vários da lista - t…
Fantástico, José! Obrigado por esta resenha. Um abraço “independentista”.