Pedalando Moçambique: Quo Vadis Democracia & Outras Reflexões
Neste mês celebra-se o cinquentenário da independência de Moçambique. E começa agora a Feira do Livro de Lisboa, época de recrudescimento de atenção livresca. Deixarei aqui algumas recomendações de livros sobre o país, esperando que “andem por cá”. Ou seja, que tenham distribuição. Ou, pelo menos, portadores disponíveis.
Até devido à extraordinária crise política que aquele país atravessou recentemente, começo por este recente livro de Manuel de Araújo, “Pedalando Moçambique: Quo Vadis Democracia & Outras Reflexões” (Gala-gala, 2024). O autor é desde 2011 o presidente do conselho municipal (edil, como no país tanto usam) de Quelimane - a consagrada cidade das bicicletas, das quais ele é grande cultor, daí também o título... Antes fora deputado. Tem sido eleito pelo Renamo - mas em tempos idos integrara o MDM, julgo mas não afianço que numa movimentação incluída no momento havido em que a ala tradicional - mais militarizada - daquele partido ostracizou um núcleo urbano/intelectual que a ele tinha aderido, coisa comum mundo afora. E em inícios de 2024 foi um dos aventados presidenciáveis, antes da convulsão que arrombou aquele partido.
Neste livro coligiu 22 pequenos textos - “postais” direi eu, até porque me parece que Araújo também andou pelos blogs, naquele período fervilhante do bloguismo moçambicano na primeira década do milénio, pejado de inovadoras expressões políticas até dissonantes, então encetado e dinamizado pelo tão saudoso Machado da Graça. Muitos foram publicados em jornal, e cobrem o período entre 2003 e 2014.
Assim dito parecerá que o livro terá apenas um valor histórico, uma colectânea memorialista, até narcísica. Mas não se trata disso. Pois o que impressiona nesta sequência é a sua enorme actualidade. O que demonstra não só a argúcia analítica de Araújo mas também, e talvez ainda mais, a perenidade (irresolúvel?) dos graves desequilíbrios políticos que assombram Moçambique. Entenda-se, o livro enuncia (os textos anunciavam) algumas dos grandes problemas endógenos que travam o país.
Seguem numa análise crítica, acerada, com cristalinas ironias mas sem acinte, espelhando o pendor do autor para fazer a Muratho Wa Zambezi, nome da coluna que tinha num semanário. Pois essa “Ponte Sobre o Zambeze” durante a sua construção, há já duas décadas, era chamada e pensada como a da “Unidade Nacional” - dado que finalmente estabeleceria a ligação rodoviária directa entre Norte e Sul. E esse pendor articulacionista mostra-o o oposicionista Araújo na forma como louva os frelimistas Graça Machel e Carlos Tembe, o bom presidente da Matola, morto precoce. Mas sem protocolos, pois propenso à crítica fulminante, como demonstra ao apontar a tão denotativa apropriação pelo poder dessa ponte, seguindo um paupérrimo culto da personalidade ao intitulá-la “Armando Emílio Guebuza”, assim desperdiçando o potencial simbólico unificador. E Araújo é nisso ferino, esmiuçando o rol de financiamentos externos que permitiram aquela construção, mais demonstrando o desajuste daquela apropriação toponímica. Ou seja, a este propósito pondo o dedo na ferida, já necrose: a gulosa vacuidade do poder.
A ordem dos textos é cronológica: começa por apontamentos sobre os últimos movimentos diplomáticos de Chissano, decerto para que não nos esqueçamos dessa era doirada da diplomacia moçambicana, “a grande indústria nacional”, dizia-a eu. Lembra o seu (e não apenas dele) impulso ainda jovem: “Estava cada vez mais claro (na minha mente) que a minha geração não estava a assumir o seu papel: a luta contra a corrupção e a erradicação da pobreza absoluta” (2004, p. 32).
Tão relevante e actual é a forma como explicita as assimetrias regionais provocados pelo centralismo omnívoro e por evidentes más vontades partidárias. Em 2005 clamava contra o “Moçambique a 6 velocidades”, a “decadência programada” de Quelimane e de outras áreas, a abandono a que o Estado vota grandes áreas do país. Tal como pouco depois, em 2010, apontava a crispação do poder para com a liderança oposicionista - dinâmicas que vieram a provocar os cíclicos conflitos de 2013 até hoje. Chamando ainda a atenção para os riscos de afronta aos direitos humanos devido à crescente militarização da polícia. E termina, até simbolicamente, com a denúncia do assassinato policial do músico Max Love.
Segue Araújo empenhado autarca. Mas autor desde há muito peocupado com a “incapacidade e, quiçá, quase “inutilidade” do actual modelo democrático” adoptado pelo país (2014, 138).
Enfim, é este um livro precioso para entender Moçambique. E para evitar distracções: os gravíssimos problemas existentes não são de agora, pouco ou nada é agora surpreendente. E há gente no país que pensa e actua.
(Julgo que o livro em Portugal custa 15 euros).