As eleições legislativas aproximam-se e aqui explicito, e explico, qual será o meu voto.
No início de 25 o Estado transladou para o Panteão Nacional o remanescente do que foi Eça de Queirós. À iniciativa da Fundação dele homónima anuíu a Assembleia da República. Mostrando como descendentes do escritor, alguns dos seus cultores e os deputados crêem na pertinência actual da panteonização. Houve alguma polémica, até entre os seus descendentes, com oponentes aludindo a uma hipotética aversão de Queirós a tais investiduras. Na época pareceu-me que “Daquilo que dele li a este propósito retiro uma ideia: o Eça ainda jovem invectivaria esta hipótese, com o seu típico sarcasmo rutilante; o Eça quarentão aceitaria, se lhe pagassem adiantado o contrato de utilização das ossadas próprias; e um Eça sexagenário ou septuagenário - se a isso tivesse chegado - ficaria impante se lhe aventassem a possibilidade”.
Pouco (ou nada) isso agora importa, pois está feito. O cerimonial ocorrido (junto a gravação) terá sido algo pomposo em demasia. Porventura apropriado a uma instituição como é o Panteão - anacrónica, se calhar já descabida. Mas também inofensiva, dali não vem “mal ao mundo”…
Recordo a cerimónia: às 2 horas e 16 minutos Bárbara Reis, que julgo ser ex-directora do “Público”, leu um conhecido excerto de Eça - há tempos que “anda por aí” feito “meme” digital. Trata-se do início da sua primeira “Farpa” - “O primeiro prólogo das Farpas - Estado social de Portugal em 1871” (pp. 11-12, na avoenga edição que herdei, publicada pela Companhia Nacional Editora em 1890).
É um trecho mordaz, crítico do “estado da arte” vigente à época. E ao longo dos tempos vem servindo para as ferroadas de cada geração numa aventada degenerescência contemporânea.
A reportagem mostra como essa selecção - feita por representante do 4º poder - foi bem acolhida pelos presentes representantes dos outros poderes - políticos, altos quadros da administração pública, porventura alguma “sociedade civil”. Todos eles apreciam o trecho - de um radicalismo algo hiperbólico do então jovem escritor -, anuem como se cabeceando. Num unanimismo que o… neutraliza, amortalhando-o. Até panteonizando, encerrando-o num cenotáfio, o pendor crítico que foi o da sua Geração de 70 quando emergente.
Ou seja, os hirtos e sorridentes “notáveis” remetem-no para um passado, queiroziano. Diz assim esse trecho:
“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos e os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido, nem instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não existe nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos vão abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima abaixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas. A mocidade arrasta-se, envelhecida, das mesas das secretárias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce… O comércio definha. A indústria enfraquece. O salário diminui. A renda diminui. O Estado é considerado como um ladrão e tratado como um inimigo.”
Mas o relevante é ser essa análise de Eça - aparentemente idealista (“O país perdeu a inteligência e a consciência moral”, começa ele…) - tão saudada, sorrida, até aplaudida pelos empossados e promovidos. Talvez por estar no início do texto, e não haverá vagar para outras páginas. Mas adiante (nas 36-37 da minha tal edição) diz um muito menos idealista Eça, mais dado à então emergente “sociologia”:
“Fomos outrora o povo do caldo da portaria, das procissões, da navalha e da taberna. Compreendeu-se que esta situação era um aviltamento da dignidade humana: e fizemos muitas revoluções para sair dela. Ficamos exactamente em condições idênticas. O caldo de portaria não acabou. Não é já como outrora uma multidão pitoresca de mendigos, beatos, ciganos, ladrões, caceteiros, que o vai buscar alegremente ao meio dia, cantando o Bendito; é uma classe inteira que vive dele, de chapéu alto e paletó.
Este caldo é o Estado. Toda a nação vive do Estado. Logo desde os primeiros exames no liceu a mocidade vê nele o seu repouso e a garantia do seu futuro. A classe eclesiástica já não é recrutada pelo impulso de uma crença; é uma multidão desocupada que quer viver à custa do Estado. A vida militar não é uma carreira; é uma ociosidade organizada por conta do Estado. Os proprietários procuram viver à custa do Estado, vindo ser deputados a 2$500 reis por dia. A própria indústria faz-se proteccionar pelo Estado e trabalha sobretudo em vista do Estado. A imprensa até certo ponto vive também do Estado. A ciência depende do Estado. O Estado é a esperança das famílias pobres e das casas arruinadas. Ora como o Estado, pobre, paga pobremente, e ninguém se pode libertar da sua tutela para ir para a indústria ou para o comércio, esta situação perpetua-se de pais para filhos como uma fatalidade.
Resulta uma pobreza geral. Com o seu ordenado ninguém pode acumular, poucos se podem equilibrar. Daí o recurso perpétuo para a agiotagem, e a dívida, a letra protestada, como elementos regulares da vida. Por outro lado, o comércio sofre desta pobreza da burocracia, e fica ele mesmo na alternativa de recorrer também ao Estado ou cair no proletariado. A agricultura, sem recursos, sem progresso, sem fazer valer a terra, arqueja à beira da pobreza e termina sempre recorrendo ao Estado.”
E este naco - nada “idealista”, menos resumível a manifesto juvenil - não é seleccionado para orlar a “pompa e cerimónia” do… Estado. Nem será sorrido pelos… oficiais do Estado. Decerto que devido à sua actualidade, factual.
Serve, pelo menos a mim, para influenciar o meu voto.