O Clérigo Mouco (11): eutanásia
(The Shootist, trailer)
Revi agora “O Atirador”, que vira apenas uma vez há já décadas. De 1976, foi o último filme de John Wayne, o Duke, autor da “imagem viril que representa a figura mais típica do herói do cinema clássico americano, que impõe respeito em qualquer grupo que se integre”, escreveu Manuel Cintra Ferreira. Esse individualista e carismático másculo, quantas vezes através da rusticidade tentando esconder a chaga interior da fragilidade. Wayne foi o símbolo desse mito cultural - entre o cândido e o conservador - “all-American hero”, estreita galeria desses raros que “que por obras valerosas / Se vão da lei da morte libertando” nisso sendo benevolentes influências na sociedade.
Esta despedida cinematográfica foi realizada pelo grande Don Siegel, o qual tanto empurrou Clint Eastwood na sua rota de sucessão ao trono do Duke, após a morte desde em 1979. Tratou-se da adaptação de um livro de Glendon Swarthout, que fora publicado em 1975 - o que demonstra a celeridade do projecto fílmico, talvez até urgência sentida por Wayne, então sentindo a sua senescência.
Neste filme com o Duke contracenam renomados secundários, entre os quais o patriarca John Carradine. E também o seu amigo e compagnon de route Jimmy Stewart, o outro lado do tal “all-American hero” cinematográfico. Este sempre simbolizando o patriota digno e destemido mas bem menos abrasivo, pois puro e idealista. Estas duas faces do Jano norte-americano assumem-nas eles no no célebre The Man Who Shot Liberty Valance, de John Ford. Pois se Wayne é o ríspido desbravador da fronteira, a cara e o corpo da expansão norte-americana, até reescrevendo a história a la carte como no The Alamo, Jimmy Stewart é o cidadão modelo, impregnado de benfazejo patriotismo despojado em Mr. Smith Goes to Washington e de benquerença no It’s a Wonderful Life de Frank Capra. Ambos os filmes verdadeiros manifestos de esperança, e neste último - até porque “o” filme de Natal durante décadas - símbolo de família e vizinhança e, mesmo, de aversão ao pecado da acédia e ao suicídio. Esta era uma imagem que bem lhe assentava, monogâmico consabido, consagrado piloto na II Guerra Mundial. E devoto crente - presbiteriano tal como o fora John Wayne, o qual, nos seus últimos anos de vida, aderiu ao catolicismo. Ambos também politicamente empenhados, nisso conservadores - tanto que o Duke pouco antes fizera o Green Berets, um apelo à guerra no Vietname.
Neste “O Atirador” também participa Lauren Bacall, a para sempre viúva de Bogart. Deste modo, através dela, no derradeiro filme de Wayne estão os três grande míticos “heróis” clássicos da tela: ele, Stewart e Bogart. Mas mais, ela encarna a personagem Bond (Rogers) - “That's a crackerjack name for a woman…”, diz-lhe um risonho John Wayne quando ela declina o seu nome (passam assim a tutear-se, depois de um início agressivo), no que é uma alusão/convocatória ao então já falecido grande amigo do Duke, Ward Bond. Ou seja, o clã reuniu-se para o grand finale.
A história passa-se no século XX, em 1901, mostrando o final do far-west lendário - já há carros, é anunciada a electrificação e a pavimentação das estradas para muito em breve. O Duke é ele próprio, anacrónico, no papel do velho pistoleiro John Bernard Books, literalmente fora do seu tempo. Após muitos anos regressou a Carson City, onde era célebre por ali ter mortos dois outros pistoleiros, apenas um episódio do seu longo rol de duelos.
Cavalgara dias para reencontrar o dr. Hostetler (Jimmy Stewart), que muito antes lhe tratara graves ferimentos, dele esperando uma segunda opinião médica. Este confirma-lhe o primeiro diagnóstico havido: Brooks tem cancro e a morrerá muito em breve, no máximo terá dois meses de vida. Explica-lhe os tormentos que terá na agonia. E o dr. Hostetler - sim, esse já velho Jimmy Stewart, o tal afinal esperançoso do It’s a Wonderful Life, o patriota do Mr. Smith Goes to Washington, o real heróico piloto, o republicano e crente devoto - diz a Brooks - a esse Duke católico e tão conservador - que deveria arranjar outra forma de morrer. Pois seria o que ele próprio faria, se tivesse coragem para tal.
E é isso que John Wayne, o Duke, fará. Não vira o seu colt contra si-mesmo, seria uma contradição. Decide morrer com o tipo de dignidade que escolheu para a sua vida. Nas suas últimas horas é acompanhado por Bond, Lauren Bacall também-Bogart, que não o tenta demover, como Bogart nunca o faria. Para os passos necessários conta com a ajuda do jovem filho de Bond, a personagem de Ron Howard - um dos poucos actores-crianças que prosseguiram a carreira com notório sucesso.
E assim em 1976 o âmago da Hollywood clássica, as “estrelas” conservadoras da grande cinematografia de XX, produziram um belo manifesto pela eutanásia.
60 anos depois em Portugal o tema - uma verdadeira questão civilizacional - continua a ter poderosas resistências. Obscurantistas. Em 2023 aprovou-se uma lei sobre a matéria. Mas sob um primeiro-ministro ardiloso é certo, mas titubeante e incompetente, nada prosseguiu. O presidente da república, um indivíduo anacrónico, vetou-a ao limite do que lhe era possível e opõe-se-lhe por razões da sua incultura esbracejante. Agora, com um novo parlamento com diferente composição e novo governo, não será de esperar grandes desenvolvimentos: a questão conta com a oposição do patético partido comunista, a do crescente novel partido fascista, a da necrose democrata-cristã. E do partido conservador (dito, por epifenómeno histórico, “social-democrata”). Quanto ao partido “socialista”, atrapalhado com a sua visível degenerescência e tendo sido incapaz de efectivar a legislação enquanto foi governo, pouco se poderá esperar nesta matéria.
Para somar a este obscurantismo impõe-se a influência da igreja católica, a qual tendo o direito de invocar o seu rumo teológico nenhum deveria ter para estes arrobos de teocracia a que se propõe alcandorar, tentando minar o poder eleito. Sendo que vem reganhando peso político, até pela atrapalhação dos cidadãos - basta ver a “futebolização” mediática aquando do último conclave cardinalício, fazendo vingar um frenesim patrioteiro em torno de um hipotético Papa luso, como se fosse isso matéria de prestígio nacional, qual “The Best” ou quejando prémio a Cristiano (lá está…) Ronaldo.
Enfim, 60 anos passaram após a eutanásia cinematográfica do Duke. E os “conservadores” daqui seguem nestas pobres trevas.
Adenda: Citação tirada de Manuel Cintra Ferreira, “Clint e o Duke”, de Clint Eastwood: Um Homem Com Passado (Cinemateca Portuguesa, 2008, pp. 202-215). Para recordar Cintra Ferreira recomendo este “Manuel Cintra Ferreira: o crítico da cinefilia e da “BDfilia”” no belo “À pala de Walsh”.