No Comboio
(Gare do Trancão)
Feliz possuidor do passe ferroviário - esse que os propagandistas do partido governamental chamam "rodoviário" -, entro em Tunes rumo à estação do Trancão. O comboio vem quase cheio, lugares marcados. Eu fico na coxia, à janela uma jovem obesa, os seus refegos transbordam para a minha metade de poiso. Avançamos, ela ouve no seu telefone uma barulhenta radionovela brasileira, com evidente representação histriónica. O alto suficiente para ser omnipresente. Segue absorta, olhar vidrado com a infecção da bovinice. Em seu torno, na carruagem há uma polifonia de zumbidos, vários - dos 7 aos 77 anos - usam os telemóveis como banda sonora pessoal da viagem.
Nunca alguém, líder de opinião desta gentalha que somos, um qualquer pastor da quinquilharia brasileira que importamos, cura mariano dos energúmenos nativos, influencer digital, setôr de educação para a cidadania, Cristina Ferreira ou Rui Moreira, sindicalista antivacinas ou ou intelectual de movimentos sociais, os (in)formaram.
Levanto-me, da mochila tiro uns auriculares - peça arqueológica que esta ralé não conhece. Ligo Mingus. Fecho os olhos: imagino o carruacídio. E, com deleite, estes cadáveres, já destroçados, nos carris.