Na morte de Eduardo Gageiro
Na morte de Eduardo Gageiro convido quem me leia a visitar o mural de Facebook do Miguel Valle de Figueiredo. Pois agora ele recolocou um magnífico retrato (verdadeira homenagem) que de Gageiro fez, em plenas comemorações do 25 de Abril, em 2024.
Gageiro foi muito (muitíssimo) mais do que o “fotógrafo de Abril” - e, entre tanto trabalho, fez um espantoso manancial de fotografias que não sendo “etnográficas” deliciam qualquer antropólogo. Mas noto que dele só tenho este livro-catálogo de uma sua exposição comemorativa, “25 Textos de Autores Portugueses Sobre Fotos de Abril” (Festa do Avante, 1999) - herdei-o do meu pai, que enquanto pôde não falhou uma Festa.
(Nem gosto muito do livro. Pois se aprecio um ensaio sobre uma fotografia, já torço o nariz a esta tendência, recorrente, de fazer ombrear imagem com um texto alusivo. Ou seja, as boas fotografias desnecessitam de serem atravancadas com palavreado, aceitam - no máximo - uma legenda significativa. Mas entendo o propósito, então o da celebração dos 25 anos da revolução, congregando algumas das mais conhecidas fotografias da época e dizeres e sentimentos de autores “camaradas e amigos” do fotógrafo.)
E uso a morte de Gageiro e as suas fotografias para falar do (meu) quotidiano. Há poucos dias, em roda alargada de esplanada, uma amiga recente, mais-nova, de súbito perguntou-me em quem voto eu. Resmunguei mudo “raisparta, ando eu a blogar sobre o assunto e nem os amigos me lêem…”. E respondi-lhe. Aduzindo um assim legítimo porque recíproco “e tu, votas em quem?”. Para ser surpreendido - pelo parco saber que do seu contexto tenho e, ainda mais, por ser ela uma mais-nova - pelo seu “voto PCP”. Devo ter esbugalhado os olhos pois ela quis justificar a opção. Cortei-a cerce, “hei, o meu pai era o Camarada Pimentel, foi-o até à morte…”. Ou seja, avancei, “votas PC? Ok, discordamos. Eu salto na cadeira é com os do BE - e não por razões ideológicas, morais ou racionais, é mesmo fisiológico…”.
Nisso o seu namorado, também meu mais-novo, simpático que eu mal conheço, avançou “eu votei no CHEGA”. E eu aí devo ter arqueado a sobrancelha, até pela surpresa da disparidade entre eles. E como tal também ele se quis justificar num “votei como protesto contra isto, contra estes tipos”. Tudo bem, cada um como cada qual, inflecti, para que não nos puséssemos ali a discutir política. Pediram-se mais umas cervejas e fomos para outros temas.
Mas fiquei com o episódio, a matutar. Por um lado, porque demonstra a superficialidade destas “identidades políticas” que as minorias sobre-politizadas continuam a brandir. Pois duas pessoas seguem imunes ao histrionismo dos comentadeiros, às arengas militantes, e nisso vão-se amando - ou, pelo menos, gostando - tendo planos conjuntos, de curto, médio ou longo prazo, isso é lá com eles, divertem-se, carnal e socialmente, partilham-se. E, entretanto, cada um vota no oposto do outro. Sem qualquer problema. Magnífico.
Por outro lado, foi-me o episódio comprovativo. O voto no CHEGA é muito isto, não ideológico ou “preconceituoso” ou “intolerante”. É o protesto contra “o estado a que isto chegou”, para glosar o capitão de Abril.
Mas o problema - e foi isso o que eu me eximi de resmungar com o mais-novo, e escrevo-o agora, talvez ele me venha a ler o postal - é que esse voto de protesto alimenta um partido cujos dirigentes e muitos militantes abominam estas fotografias. E tudo o que significam.
São os que se dizem “deputados da Nação”, chorosos do Estado Novo. Irados contra o apear da imagem de Salazar (magnífico momento de Gageiro, se encenado ou não pouco importa), pois ao ditador apondo virtudes. Revanchistas contra as liberdades individuais - de facto crentes na necessidade de amordaçar, alguns que sejam, até algemar se possível. Saudosistas do colonialismo, vendo traição na justeza histórica. E que votando nesta gente, por protesto contra estes trastes que entretanto vão mandando, mais eco lhes é dado. Mais capacidade de influenciarem outros, de lhes inculcarem as suas abjectas ideias.
Que assim se vão disseminando. É agora notório que no país democrático do grande Rui Manuel Trindade Jordão, de Shéu Han, de Gil, de Oceano, de Éder, de tantos outros, vitoriosos ou não, célebres talentosos, esquecidos medianos, desconhecidos medíocres, surgem agora - como nunca antes - nas catacumbas da internet bramidos contra “negros” nas selecções desportivas nacionais. Pois, para essa escumalha, antes menor e menos ruidosa, o “preto” não é digno de nos representar. Há que os esconder, pelo menos, a esses tais. Ou até escorraçar. E o voto “de protesto” anima, alimenta, esta cáfila asquerosa.
E - mesmo sendo hoje - não nos chega a arte do Nuno Mendes para opor a tal gente. Ou a garra dos putos Sub-17. Pelo contrário, ira-os ver “pretos” com sucesso.
Será para isso adequado voltar às fotografias de Gageiro. Que nos mostrou como “povo” daquelas maneiras. E também como “povo” querendo paz (contra os malvados do “Império”) e liberdade (contra os melifluos da “Nação”). E nisso virar costas a esta gentinha. Que é verdadeiro “Lixo Branco”, como dizem lá nos EUA.