Na Feira do Livro de um "Manual para andar espantado..., com Patrícia Portela
Domingo passado fui à Feira do Livro. Acompanhado pelo amigo Fernando Veloso, o único tipo que me pagou para escrever regularmente. O Fernando foi um dos primeiros amigos que fiz em Maputo, era ele director (“editor” diziam) do jornal-fax “Mediafax” - sentou-se à mesa, acompanhando um tipo que eu convidara para jantar. No final eu fiz menção de pagar a conta, ele negou-se, ríspido num abrasivo “eu não me vendo às chancelarias [ele adorava o termo] ocidentais”. Eu resmunguei uma qualquer interjeição muda e deixei-lhe “se assim é!”, pois não valia a pena insistir. E desde então, nestes 18 anos, passámos a pagar comes e bebes um ao outro… Neste entretanto ele fundou o “Canal de Moçambique” - esse mesmo que há anos foi arrasado à bomba (algo que colheu o silêncio substantivo dos nossos órgãos jornalísticos) -, no qual eu escrevi durante anos a minha coluna “Ao Balcão da Cantina”.
Começámos o passeio livresco como deve ser: um cozido à portuguesa no Cabeça do Touro, popular restaurante nos Olivais. Só depois avançámos para a Feira, com o objectivo de assistirmos à apresentação que o Paulo Dentinho - nossa amizade feita em Moçambique - iria fazer do novo livro do antigo ministro António Costa Silva.
O Paulo esmerou-se na sua arenga sobre esse “Portugal na Europa e com a Europa: que Futuro?” (Guerra & Paz). Depois falou o autor, numa bela prelecção sobre o assunto que abordava, a situação da “Europa”. Afirmando-se um “optimista” (as gentes de “esquerda” gostam de se afixar como tal) traçou um quadro um bocado negro da - catatónica, percebi-o eu - situação económica europeia. Livro decerto interessante.
Depois seguimos para a chamada Praça Leya, pois o bom do Dentinho iria fazer uma sessão de autógrafos no seu “Sair da Estrada” - livro sobre o qual eu escrevi em tempos um “apelo à leitura” que já aqui reproduzi. E nós íamos aproveitar isso para conversar um bocado, pois está ele em Bruxelas, o Fernando em Faro e eu nas cercanias do Trancão. O meu objectivo era também arrastar o tempo, pois ao fim da tarde o Vítor Sá Machado apresentaria o seu livro - e a isso também já aqui aludi. Mas mais ainda, uma amiga minha combinara encontrar-se comigo para comprar o livro do Paulo e conhecê-lo, tanto o gabo eu e alguns outros. Lá chegou ela, sempre belíssima e airosa - “não precisas de ficar nervoso quando me vês” destapou-me ela, e eu a sorrir, que isto de um tipo aos 60 anos ainda se atrapalhar diante de uma beldade é reconfortante. Só me faltou foi corar, isso sim seria mesmo rejuvenescedor…
Durante tudo isso - e enquanto o Dentinho ia despachando um largo punhado de livros, o que para uma edição já de 2021 é de assinalar - eu subi ao estrado onde estava ele e um conjunto de escritores da editora, seus assim colegas, todos ali gatafunhando as respectivas obras. E dirigindo-me a uma outra escritora que o ladeava, Patrícia Portela, disse-lhe, sendo por outros ouvido, “pois saiba que li toda a sua obra e com bastante apreço”.
Portela ficou sensibilizada. Não só me recomendou a leitura do livro do escritor que com ela conversava - o angolano Júlio de Almeida, que ali divulgava a sua autobiografia “Viver até ao Fim” (Caminho). Como também fez questão de me oferecer - dado ser eu um seu leitor veterano - o seu recente “Manual Para Existir Espantada Por Existir” (Caminho) - a fotografia que encima o postal mostra o exemplar já impregnado de uma gentil dedicatória. Afiançando-me que se tratava do exemplar nº 1. Ou seja, dava-me ali o seu exemplar, dado que a obra só estará disponível após a sua apresentação pública no próximo domingo, 16 horas, na “Praça Vermelha” da Feira do Livro. Fiquei ufano, pois dono do tal nº 1…
Não trato aqui de fazer uma recensão - aliás, este livro não será exactamente “recenseável”. E consta que sobre ele falará Rui Zink, outro escritor e com verve, pois também comentador televisivo. O qual presumo partilhará texto avalizado sobre o assunto. E também porque este “Manual…” dialoga com o “Aventuras de João Sem Medo” de José Gomes Ferreira, livro que não li, o que tornaria apatetada qualquer tentativa de vasculha do seu conteúdo. Além de que reflecte a influência dos escritos de João Medrosa - ao que julgo um discípulo do intelectual Acácio Nobre - os quais desconheço.
Assim apenas anuncio que esta leitura me despertou memórias daquela “Alice” (não a do Boaventura Sousa Santos, entenda-se, mas sim a de Lewis Carroll). E resumo o que ali vivi: de como tentei usar o livro para reforçar esta necessidade de “andar espantado…” - que é até deontológica, para qualquer licenciado em antropologia. Ou seja, não discorro sobre o conteúdo da obra, e talvez apenas quem a tenha lido perceberá o que balbucio.
A autora começa por um heptálogo de procedimentos adequados à leitura / apreensão dos seus dizeres. Procurei seguir alguns: requere ela um “colete com muitos bolsos”, eu recuperei o velho “colete de jornalista” que o antropólogo de terreno usava; ao amuleto dela chamei manipanço. Outros adaptei, ao seu “copo de capilé” e “copo de água” troquei por umas cervejas do Lidl. Mas no último ponto desconsegui segui-la. Pois desconheço isso de “tenta não pensar só com a parte lógica do cérebro para te poderes espantar por existir” (13). Pois continuo dogmático, crente de que só a Razão nos permite o espanto diante disto tudo… Mas depois percebi que, afinal, não discordo assim tanto ao deparar-me com “o medo é um sentimento que, quando se cultiva, pode paralisar as pessoas de sonhar livremente. Ou transformá-las em brutamontes” (22). E por aí adiante.
No rumo do livro, que de facto é um desassossego, há umas problemáticas a enfrentar: um Muro que é necessário furar, uma Floresta que talvez seja preciso calcorrear. E, mais do que tudo (para mim) uma impossibilidade, a da partilha das dores, “pois ninguém pode partilhar uma dor” “nem podemos trocar de dores” (66-68). E, talvez mais do que tudo (para os outros), uma Senhora Verdade Nua afrontada pela percepção de “que nunca tinha visto uma verdade verdadeiramente nua” (79), diante de uma até ensaística desesperança da “impossibilidade de conhecer por inteiro a verdade” (85).
Lá para o fim do livro a autora Portela faz um capítulo, “O quarto da solidão” - “eu sou apenas uma parede que pode envelhecer, que se pode sujar, que te pode proteger da chuva e do frio, mas que não pode chorar nem salvar ninguém dos seus pensamentos, dos seus fantasmas” (104) etc… até ao pedido supremo “Podes sentir-te livre por mim?” (107), uma convocatória ao locatário. E eu senti-me aquele quarto, aquele emaranhado de paredes, retratado, qual afinal minha Verdade Nua. Biográfica. Engoli em seco. E troquei a tal recomendação autoral inicial do capilé e da água, ou lá o que era, e os placebos pelos quais tinha optado. E bebi um largo uísque. Espantado? Não. Mas isso é comigo, é meu segredo, pois não há… verdades nuas.
(não se percebe o que quero eu dizer sobre o livro? Leia-se o “Manual…”, cada um que se espante. Ou não. Como quiser. Ou, melhor, como conseguir)