Lídia Jorge e Rebelo de Sousa no 10 de Junho em Lagos
“… que poder pode destruir / a liberdade de quem quer morrer, / imensamente azul, / agasalhado na discreta sabedoria / de uma qualquer memória / deste ou de outro tempo?”
(Heliodoro Baptista, A Filha de Thandi, Associação de Escritores Moçambicanos, 1991)
Perguntaram-me quais as causas do meu desagrado com os discursos do 10 de Junho, em especial diante do de Lídia Jorge. Respondo agora. Alongo-me - peroro - pois associo os seus conteúdos aos debates a que aludem, mas também porque me quero explicar. Pois procuro evitar o registo de “achismo”. Esse que, a crer-se em alguma intelligentsia nacional actual, terá baseado os meros “achamentos” que fizeram a - nessa data - sempre evocada história náutica portuguesa.
1. No Portugal democrático os discursos de 10 de Junho são já uma tradição, encetada em 1977. Alguns deles têm sido memoráveis. Desde logo o extraordinário texto de Jorge de Sena, nesse mesmo ano. Em 2012 o do reitor Sampaio da Nóvoa deu brado, dado o seu pendor crítico, tendo-o catapultado para uma candidatura presidencial. Em 2019 teve grande eco, polémico, o do jornalista João Miguel Tavares. Também com críticas à situação nacional. Os que haviam saudado Sampaio da Nóvoa - tanto que o fizeram candidato - apuparam Tavares. Tal como os que haviam apupado Sampaio da Nóvoa então aplaudiram Tavares.
No meu blog de então referi a similitude destes dois discursos, na atitude crítica e no conteúdo dos diagnósticos feitos. Nisso mostrando o partidarismo que grassa(va) entre os ouvintes, assim de facto alheados de reflexões em prol do interesse nacional.
Depois, no 11 de Junho de 2019, no Mindelo, Tavares fez o discurso mais pertinente e progressista - “inclusivo”, diz-se agora - da história destas comemorações democráticas (publicado no livro Dêem-nos Alguma Coisa em que Acreditar). O texto não teve grande repercussão - as pessoas estavam já acaloradas, entretidas no jogo PSXPSD, “esquerda” vs. “direita”, que as palavras da véspera tinham feito recomeçar.
Comovi-me ao ouvi-lo. E escrevi um postal de que deixo excerto : “Para um tipo como eu, português que passou duas décadas numa antiga colónia portuguesa, … ler um texto destes, proferido num discurso comemorativo do dia nacional português, é momento de júbilo.
O que Tavares diz sobre o colonialismo (português) mas não só, o que desmonta da perene ficção da "excepcionalidade portuguesa", o que se afasta explicitamente da loa "lusotropicalista", o que diz sobre "responsabilidades históricas" nacionais, o que diz sobre a reprodução das desigualdades no nosso território nacional, a perenidade da estratificação social que se alimenta dos fenómenos migratórios oriundos do anterior contexto colonial, o que diz sobre a necessidade de as combater, entendendo-as como fenómenos de "classe" ainda que sem descurar as suas componentes culturais e linguísticas, e, fundamentalmente (porque intelectual português), o que diz sobre o ensino multilinguístico, e a necessidade de fixar, preservar as línguas africanas e introduzi-las no ensino, em particular considerando a responsabilidade histórica de Portugal de nisso contribuir e de a isso proceder no próprio ensino oficial português, é um inusitado acto de civilização. Totalmente ao invés do pensamento dominante português, seja no espectro dos intelectuais profissionais, seja, e principalmente, no mundo das organizações estatais e para-estatais e seus funcionários.”
2. Impressionado pelo discurso, então escrevi também: “As comemorações oficiais do 10 de Junho são um ritual. O fundamental da sua coreografia actual é o modo como explicitamente denota a democracia como constitutiva do país, da sua identidade, assim afirmando-a. O seu conteúdo central são os discursos: os presidenciais, que são esperados como relativamente protocolares, "cinzentos". E os de um convidado, oriundo da sociedade civil e assim algo autónomo, ao qual é entregue a responsabilidade de dizer algo relevante sobre o devir do país…
É isto o actual 10 de Junho, dia do Portugal democrático. Não é o dia em que o Chefe de Estado fala ao país reafirmando a sua visão e o seu programa. É o dia em que o Estado dá o palanque a alguém, assim ao país, para que este critique e desvende o presente e até, porventura, aponte alguns rumos. Que alumie o que lhe for possível. Na sua relativa autonomia de intelectual ... Mas o realmente fundamental é este molde cerimonial, assim significando e celebrando a democracia.”
É com este entendimento que muito me desagradou o discurso de Lídia Jorge. Pois poluente. Obscurantista.
3. Neste seu último Dia de Camões presidencial Rebelo de Sousa foi algo inócuo. Plácido face ao presente. E apaziguador com o passado - e nisso se realçou a referência, en passant, a Mouzinho de Albuquerque. Tê-lo-á querido quase como conclusivo do seu mandato. Talvez, de modo sub-reptício, apagando as suas prévias impertinências ao revisitar a história nacional: em 2017, visitando Gorée, afirmou Portugal pioneiro do abolicionismo; e nas celebrações do 25 de Abril em 2023 e 2024, apelou ao pagamento de “reparações” às antigas colónias.
Não repito o que escrevi (estes dois textos: 1, 2) sobre essa alusão do PR ao mito do abolicionismo na era do Marquês de Pombal. Mas a inesperada subscrição do tema “reparações” - assumindo uma perene “dívida” histórica -, e para além de outras questões sociológicas que o assunto implicaria, exige recordar uma matéria política.
Pelo menos desde o tratado de Roma (1957), os países “ocidentais” - muitos dos quais confluíram na UE - vêm tratando de promover, de modo bilateral e multilateral, a Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) - e não só “pública”. Via que integrou as sucessivas convenções de Yaoundé, Lomé e posteriores arranjos articulando países ex-colonos e seus congéneres e o amplexo “África, Caraíbas, Pacífico” (ACP) - grosso modo, as ex-colónias.
Não reduzo a “virtuosos” os objectivos e métodos dessa “cooperação”, nem os digo quais “reparações históricas” - mas desta questão não podem ser liminarmente apartados. Os parâmetros do conceito “desenvolvimento” são discutíveis, tal como as práticas institucionais (estatais, multilaterais, não-governamentais) que lhe foram sendo associadas. E muitas vezes essas relações internacionais instauraram moldes assimétricos, em prol dos doadores - a criticada “ajuda ligada”num âmbito estrito; a reprodução de dependências de cariz neocolonial num âmbito mais alargado.
No nosso caso é consabido sofrer a “cooperação” portuguesa de uma crónica suborçamentação (face aos compromissos multilaterais), inoperância institucional e, talvez pior, demasiado enfoque nos países da CPLP, o que lhe traz um anacrónico viés ideológico.
Mas a diversidade das dinâmicas nesse enquadramento das relações internacionais não é redutível - como clamam alguns - a estratégias neocoloniais e a meros reflexos da “doutrina Truman”. Ou a propósitos exploratórios, “extractivistas” diz-se agora. Nem pode ser sumarizada por discursos catastrofistas, que afirmam a total ineficiência do “desenvolvimento”. Essa visão negativa extrema - que grassou nas duas últimas décadas de XX e até na subsequente - pode ser contraposta à realidade do desenvolvimento de vários países do diversificado contexto ACP. (E, a latere, pode ser agora confrontada com o clamor de lamentos face ao encerramento da… “cooperação” norte-americana, alguns paradoxais pois oriundos de adversários da APD).
Aliás, se foi consistente a crítica ao ideário desenvolvimentista por estar eivado de “eurocentrismo”, também o é apontar um “afrocentrismo” ao seu repúdio radical. Por este se basear nos efeitos mais reduzidos nos países subsaarianos. E ainda por nessa contestação se menosprezarem as dinâmicas internas que obsta(ra)m a transformações desejáveis nas sociedades africanas. Assim a estas desvalorizando, reduzindo-as a frutos da inadequação das influências externas e ao legado do passado colonial. E todo este ambiente intelectual concorre para uma (auto)vitimização africana.
Não nego empecilhos internacionais ao desenvolvimento naquele continente, desde estratégias erradas a práticas agressoras, passando pelo espartilho dos mercados internacionais. Mas a elisão dos entraves endógenos e o propagar da retórica vitimizadora - da qual consta o tal lamiré do “pagamento de reparações históricas”, associado ao apagamento da importância da “cooperação” internacional - serve a legitimação ideológica de inúmeros regimes de pendor autocrático e de recorrente tendência cleptocrática. A qual muito se alimenta do queixume do escravismo histórico e da reclamação de uma continuidade “colonial” actual.
Ou seja, nesta matéria Rebelo de Sousa fora antes imponderado e superficial. Mais que não fosse por ter negado a realidade de décadas de política externa, nacional e multilateral. É louvável o seu recuo neste 10 de Junho, mesmo que apenas implícito.
4. Lídia Jorge foi mais polémica, invocando a histórica malvadez nacional. Quis usar o passado para falar do presente. Assim do futuro. Enfim, de política. Fê-lo com “boas intenções”. Mas de modo superficial, demasiado imperfeito. E com conteúdo ideológico muito criticável.
A escritora não tem a responsabilidade total do seu falhanço - ainda que se exigisse maior densidade intelectual face à honraria que lhe foi concedida. Pois o problema de fundo é a crença geral de serem os escritores quais demiurgos. E por isso áugures. Presume-se-lhes a capacidade de debitarem uma reflexão sistematizada e projectiva sobre as sociedades. Por isso são escassos os apelos a outros criadores (“artistas”) para dissertarem sobre as características presentes e os desejáveis futuros nacionais. Ao invés, abundam os convites aos escritores. Essa condição privilegiada também a reclama Lídia Jorge: “Era a história, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela literatura”, disse agora em Lagos.
Entre alguns escritores emergem laivos, vislumbres, apneias, voos flanantes, que nos desvendam. Mas a tarefa da análise sociocultural explícita escapa à maioria - com excepções, como o evidencio acima, no louvor a Jorge de Sena. Até porque lhes é usual ser mais produtivo o registo literário - o rumo do implícito, quantas vezes a polissemia - do que a via sistemática ou programática de manifesto, ensaio ou… discurso.
Nisto não comparo ou hierarquizo méritos literários dos autores. Apenas lhes distingo competências. Ilustro, recorrendo a autores que prezo, para não aparentar que apouco o olhar literário: em finais de XIX Conrad avisou - como no seu Mocidade - que a transformação das mundividências - a “modernidade”, se se quiser - proviria da transição dos veleiros para os navios motorizados. Não apenas ecoava as suas memórias de marinharia: anunciou o futuro, global! Assim expressou mais o Portugal actual do que o celebrado Pessoa em trechos quais “Quem nasce em Portugal é por missão ou por castigo” ou - sobre Sidónio Pais - “Tornas possível Portugal / por teres sido!”. Mas são estes nacos intangíveis que animam, ainda hoje, as sensibilidades analiticamente embotadas.
Mais relevante é o facto de cada autor ter diversos registos e aptidões. Para exemplo português dessa diferença opto pelo mergulho num “Portugal” de José Cardoso Pires em Alexandra Alpha face o seu prévio verdadeiro naufrágio intelectual em “Prefácio Natural do Medo”, integrante do E Agora, José?, onde o autor se arvorou em analista político. Ou - e porque há pouco sobre ele conversei em Lagos - pelo apartar da excelência, luminosa, do V. S. Naipaul ficcionista em África (In a Free State, colocado no livro homónimo, A Bend in the River, Half a Life) do seu pungente anacronismo, até oitocentista, como ensaísta em A Máscara de África.
5. Divago um pouco, para enquadrar este meu desgosto. Há cerca de meio século, no seu “Algumas feições persistentes da personalidade cultural portuguesa” (em A Cultura em Portugal I, Gradiva, 1996, 77-78) António José Saraiva considerou ser necessário o estudo “de maneira imperfeita e provisória” das “características” do “povo” produtor da “cultura nacional”. Confiou ser possível encontrar “juízes penetrantes” em obras não-científicas (escassas e de ensaísmo não literário, frisava).
Nesse rumo, e para “diminuir os perigos do (inevitável, di-lo) subjectivismo”, aconselhou o recurso a “certos índices relativamente consistentes”: factos históricos; língua (pois expressa um “espírito próprio”); instituições; interpretações estrangeiras; literaturas e artes - expressando tendências subjectivas, mas realçando que estas “nem sempre chegam a ter expressão material e social”.
Tudo isto para obstar ao “risco do impressionismo arbitrário, dos estereótipos e das generalizações sem fundamento, de que aliás há vários exemplos”. Mas, passado meio século - no qual tanto se desenvolveu a nossa historiografia e as aparentadas ciências sociais -, mantém-se o apreço pelo rio de “impressionismo arbitrário, dos estereótipos e das generalizações sem fundamento”. Literato, neste caso.
As fontes dessa continuidade são várias. Uma é ideológica e/ou política, mesmo que os locutores sigam inconscientes dessa influência. No O 18 de Brumário de Louis Bonaparte (1852) escreveu Marx: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade, em circunstâncias escolhidas por eles próprios, mas nas circustâncias imediatamente encontradas, dadas e transmitidas”, algo que é até canónico.
Mas logo adiantou: “A tradição de todas as gerações mortas pesa sobre o cérebro dos vivos como um pesadelo”. Ora assim ficaria o presente um mero epifenómeno do passado, deste prisioneiro - face ao próprio autor isto seria um paradoxo, até um idealismo. Justiça lhe seja feita, a sua obra subsequente não se restringiu a isto.
E é este marxismo simples, “linear”, que muito baseia as derivas actuais, ditas “pós-marxistas”, “desconstrutivistas”, “decoloniais”, etc. Vive em nichos académicos e “movimentos sociais” de imaginário revolucionário. O substrato é a aversão à democracia liberal (o “capitalismo”, o “Ocidente”, a “Europa”), que a esta entende como mera sequela dos sistemas coloniais - pois subordinada às mesmas concepções, à tal “tradição” “pesadelo” que “pesa sobre o cérebro dos vivos”.
Daí a actual insistência na instauração de categorias administrativas raciais nas sociedades “ocidentais”, como se estas sejam quais as velhas colónias. Sob o argumento de promover “discriminações positivas”. Mas é apenas fruto da crença - marxista - de incrementar uma revolucionária “consciência de classe”: a transição da “classe-em-si” para “classe-para-si”, agora transfigurada “raça/etnia-em-si” em “raça/etnia-para-si”. Construindo “grupos” para animar os conflitos sociais, o tal “motor da história” marxista.
E para esse objectivo convém exarcebar a afirmação da omnipresença actual da “tradição” colonialista racista, a mácula histórica “ocidental” - aliás, dos “brancos”. Ou seja, da democracia liberal. Para isso se afadigam para apear, desmontar (“desconstruir”) os símbolos - como se estes dotados de valor facial - da “memória” do passado.
Outras influências reforçam o fluxo de “impressionismo arbitário”, até externas a ambientes “revolucionários”. O privilegiar do literato - patente nas humanidades, estudos literários, estudos culturais, etc. - menosprezando o complexo de ciências sociais. É isso um efeito da desvalorização (estratégica ou inconsciente) da análise da contemporaneidade, pois esta passível de desmentir o tal imutável “peso” do “pesadelo” da “tradição”. Refutação, por vezes distraída, das mudanças nas mundividências, confluentes e conflituantes, das sociedades liberais.
Exemplifico com um interessantíssimo intelectual, malgré lui-même pois alheio ao espectro marxista: Onésimo Teotónio de Almeida que no seu “A Obsessão da Portugalidade” (Quetzal, 2017) disparou “É esse o peso da tradição, a “doce tirania do passado”… que todas as ciências sociais do mundo não conseguirão eliminar.” (p. 62). Acusando de positivismo as ciências sociais - até a antropologia, por tantos outros repudiada por putativa fidelidade às tradições, por fixação “culturalista” -, pois atentas à realidade factual contemporânea, assim talvez menos concordantes com o primado impressivo da tal “tradição”.
Enfim, pode-se aceitar esta vigência da “tradição” colonial - reconhecendo-a presente, como se universal, na história e na actualidade nacional. E colori-la com reclamações de “activismo”, de “empenhamento” para “boas causas”. Ou preferir o resmungo diante da militância dada ao “impressionismo arbitrário, dos estereótipos e das generalizações sem fundamento”. Sigo no meu resmungo…
6. Lídia Jorge criticou a mediocridade que nos avassala, o racismo - que filia ao escravismo histórico -, e o populismo, mas a este não nomeando. No fundo, afirma-o resultante do tal “pesadelo” que nos oprime, da nossa maculada “tradição”. Nessa via traçou um quadro da actualidade, enviesado para reforçar a sua argumentação.
Anunciou “Somos pobres e injustos”, decerto para nos filiar nos modos e trejeitos dos “egrégios avós” de antanho, mares afora conquistando, pilhando e comerciando. E por isso agora reprodutores da malvadez crónica. Mas isso é falso: não somos “pobres”, e se descemos agora um pouco para 42º país no Índice de Desenvolvimento Humano, mantém-se um índice alto de desenvolvimento. Nem somos “injustos”: para além do tal decente desempenho desenvolvimentista (um dos factores de Justiça) somos 27º entre 140 países no Índice de Estado de Direito.
Seguiu, vendo-nos involuídos, pois agora “os cidadãos são apenas público, que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores.”, “A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende.” Isto é apenas o básico que vários mandarins televisionados - como, para citar os mais célebres, Miguel Sousa Tavares e José Pacheco Pereira - repetem até à exaustão: os problemas políticos portugueses advêm das “redes sociais”.
Poderemos associar esta visão às preocupações que o liberal Popper já tinha com os efeitos políticos nefastos da televisão. Ou matizá-la com o elogio à cultura digital feito por Michel Serres, no seu “Polegarzinha”. Mas a matéria é muito mais rasteira: em breves anos passámos de “os melhores dos melhores do mundo”, de acordo com o PR Rebelo de Sousa, dotados da “geração mais preparada de sempre”, como disse o PM António Costa, para uma sociedade de alienados incultos, prisioneiros da hidra digital. O que mudou, para aqueles chavões terem fenecido? Sobre isso a oradora nada diz, prefere reduzir-nos a meros “seguidores” de “figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia”, adeptos de uma cultura de mediocridade.
Ora, se é evidente o crescente aproveitamento político das redes sociais digitais estas vigoram há já duas décadas. Ou seja, a nossa mudança não radica nelas. Mas no surgimento de um partido direitista, de ideário populista e ânimo xenófobo - algo comum em países europeus. Causando um abanão no regime político, até crise deste.
Esse rumo direitista, basto demagógico, aproveita-se de invectivas a três motes fundamentais: corrupção; insegurança; excessiva imigração. Portugal não tem grande incidência de corrupção. Mas o presente sucesso do tema não assenta na nossa “tradição”, na “doce tirania do passado”, por exemplo na memória das palavras de Camões ou António Vieira sobre o assunto. Mas sim dos casos políticos conhecidos e das delongas jurídicas em seu torno. Da actualidade.
O país não sofre de insegurança. Mas a percepção de um incremento da criminalidade - a “insegurança subjectiva” - não deriva das redes sociais. Alimenta-se do frenético feixe noticioso em várias estações televisivas - a pública e as privadas que emitem sob alvará estatal. Nas quais trabalham os tais mandarins televisionados, “peritos” em análises simplistas. E inúmeros políticos.
Essa “insegurança subjectiva” não é redutível à “tradição” nacional. Face a alguns núcleos populacionais há desconfiança, assente em pressupostos negativos, com várias matizes, por vezes de cariz racista. Mas o incómodo securitário com a recente imigração islâmica - de maioria indostânica - não ecoa o “pesadelo” histórico do “há mouro na costa” - a memória das investidas para razia, pilhagem e escravização feitas pelos vizinhos muçulmanos - ou qualquer revanchismo face aos infaustos destinos medievais de Fernando e Sebastião ou mesmo com a “perda de Goa”. Provém da actualidade transnacional: a problemática coexistência dos imigrados na Europa ocidental e, mais do que tudo, as acções espectaculares dos fascistas islâmicos.
Também as suspeitas da putativa criminalidade brasileira não provêm de um anseio na mudez de Ipiranga ou de temor provocado pelas descrições que Gândavo fez das crueldades amazónicas ou mesmo do destratamento que os emigrantes portugueses oitocentistas por lá sofriam. Originam-se da percepção de um Brasil actual muito criminalizado.
Entre os vizinhos negros há queixas de racismo securitário - desde o policial até à desconfiança da restante população. Mas é pobre reduzi-lo a emanações dos textos de João dos Santos ou António Ennes, das memórias das revoltas dos quilombos ou da mais recente resistência às culturas comerciais forçadas. Muito mais ecoam as cesuras de uma sociedade estratificada, obstáculos a imigrantes e suas descendências. E - especulo, mas nisto crente - na formativa influência da omnipresente produção audiovisual norte-americana, ecoando uma sociedade de tamanhos e violentos contrastes racializados.
Em sete anos (abrangendo os dois anos de Covid-19, de pouca mobilidade) a população imigrante quadruplicou, ascendendo a 15% dos habitantes. E presume-se a continuidade desse crescimento. Trata-se da maior revolução social na história portuguesa. E inesperada, pois potenciada por uma mudança política da legislação que não foi anunciada - nem debatida - como direccionada para estes objectivos.
Esta situação denota a realidade nacional: a estagnação (desde início de XXI) do desenvolvimento português; uma economia assente em mão-de-obra barata, que induz a emigração própria, que continua imparável. E que atrai uma gigantesca imigração de pauperizados, verdadeiros neo-coolies. Só numa sociedade cataléptica um fenómeno destes não causaria reacções.
Remeter o sucesso destes motes demagógicos para a vigência de uma histórica perfídia cultural transposta numa xenofobia endémica, agora potenciada pela alienação promovida pelas redes sociais? Ou, ao invés de diabolizar a tal nossa “tradição” malévola - qual cloud transhistórica que nos controla, uma bruxa Big Mother -, analisar (e “discursar”) as causas do processo político?
7. O restante das elaborações de Lídia Jorge é uma amálgama de tópicos usuais, cuja associação procura sublinhar a permanência infecciosa da maculada cultura nacional. Sempre descurando as dinâmicas actuais.
Como é comum na data, sublinha a adesão popular a Camões pois os “portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior”. É usual referir que o poeta fez do colectivo nacional o seu herói épico. E disso muito se faz a inversão de considerar que entre a população habita uma “psique épica” - até imperial. Como se Portugal tenha vindo a ser feito, ao longo dos séculos, por leitores impregnados de Camões. O que seria extraordinário num país que teve um enorme analfabetismo, e maior iliteracia, até há pouco. E que nas últimas gerações, as da massificação do ensino, a este “descamonizou”.
É consabido que desde Garrett foi Camões um material simbólico apetecível. Apropriado por várias correntes intelectuais e políticas - romantismo, republicanismo, Estado Novo. E pela nossa II República, moldada pelos herdeiros republicanos da sua antecessora. Os quais, por isso mesmo, nem hesitaram em retomá-lo como símbolo pátrio, apesar do extenso uso que lhe fez o salazarismo. Ou seja, a sua visibilidade política não corresponde a um mítico “sentir português” mas porque tem sido ideologicamente apropriado pelas elites políticas.
Mas quando L. Jorge se regozija com a actual “espécie de comemoração espontânea e informal” do quinto centenário do poeta, faz flanar a “alma épica” nacional, o apelo popular de Camões - da “tradição”. Mas a “comemoração espontânea” tem outra causa: governo anterior, sob o ministro Adão e Silva, descurou as comemorações oficiais. Entretanto esse governo caiu, houve sucessivas eleições, pouco brado isso deu.
Este facto - de pequena política - demonstra a incompetência daquele período governativo, a qual tanto influenciou várias matérias a que acima aludo. Mas também denota a atrapalhação que alguns sectores ideológicos têm agora com a história nacional. Devido à tal tendência autopunitiva, de que Lídia Jorge foi locutora. Assim, não sabem o que fazer de Camões! Nem lhe prepararam a “festa” de (500º) aniversário… E é neste âmbito que vêm surgindo comemorações parcelares, oriundas de instituições - estatais e privadas - onde habitam os meios literários. Essas “espontaneidade" e “informalidade” celebratórias derivam de uma trama sociopolítica. E não um de “espírito nacional” transhistórico, “enamorado” da épica camoniana.
A mesma ahistoricidade dedica a autora ao Infante D. Henrique, que esmiuçou, decerto por discursar em Lagos. O que faz presumir que ainda o entende como símbolo crucial da construção identitária, como tal criticável (“desconstruível”…). É uma visão anacrónica, serôdia.
Henrique foi símbolo manuseado. Algo bem demonstrado pela imagem com que encimo este texto, a capa da colecção de cromos, muito popular no Estado Novo. Durante o qual foi louvado, como em 1940 na Exposição do Mundo Português, e em 1960 nas Comemorações Henriquinas - essa verdadeira “caução do colonialismo português”, como logo então lhe associou Eduardo Lourenço. A sua figura, inscrita em algumas estátuas país afora (e em Lagos, claro) consta do “imaginário colectivo (com) alguma função compensatória de carências e frustrações”, como disse com aisance Vasco Graça Moura (Oceanos 17, 1994).
Mas há muito que não é dínamo da identidade nacional nem estruturante das mundividências - se é que alguma vez o foi. Sou de 1964. Já a minha geração não era impregnada pelo seu mito. Aliás, da dita “Ínclita Geração” a figura sublinhada pelo ensino escolar não era o “mártir” Fernando nem o “navegador” Henrique. Mas sim o regente Pedro, apresentado como se humanista, até quase a la estrangeirado, qual proto-europeísta - não podíamos nós alunos perceber isso, mas a versão era fruto do debate historiográfico anterior, entre “pedristas” e “henriquistas”.
Mais importante do que isso: para o seu encontro com Henrique, Lídia Jorge recorreu a Zurara, pois a Crónica da Guiné deste foi material fundamental para a edificação do figura do “Navegador” - o texto foi descoberto em 1837 e paulatinamente divulgado no país, o que mostra a pouca anterioridade desta mitografia. O meu exemplar (Livraria Civilização, 1973) tem um introdução de José de Bragança, escrita em 1937 - o apogeu ideológico do Estado Novo. E já então - em 1937 (!), repito - se opunha à edificação de um “monumento grandioso”- em Sagres - e ridicularizava os elogios que lhe eram dedicados em “estilo ditirâmbico ou pindárico” (xxv). E o mesmo autor, na introdução à reedição, escrita em 1972, no ocaso do Império, regressava à aversão às hipérboles sobre o infante.
Ou seja, quer-se “desconstruir” o quê, quando neste 2025 se resmunga com o infante D. Henrique?
8. O mais ideológico passo de Lídia Jorge é a sua abordagem ao escravismo no afã de afirmar uma histórica excepcionalidade (malévola) portuguesa, como substrato de uma crítica - que se julga radical - à nossa actualidade. Se antes tal excepcionalidade era dita “lusotropical”, aquele benevolente “modo português de estar no mundo”, este agora surge dotado de peculiar malevolência, de gente “escravófila”.
A escritora, reclamando-se locutora da “verdade”, resume: “Falo com o sentido justo da reposição da verdade e do remorso pelo facto de que se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, como polos de abastecimento nas costas de África…”. Tem remorsos - sente efeitos da “culpa” católica, porventura - dos actos dos nossos tais “egrégios avós”, e fá-los inventores do comércio escravista intercontinental. E a nós, seus descendentes, reduz a putativos reflexos, deixa-se entender.
Isto é uma pura falsificação da história. Há um quarto de século o grande historiador congolês Elikia M’Bokolo publicou em revistas de grande divulgação - basto acessíveis aos não historiadores que se interessem pela matéria - “Foi por todas as rotas possíveis - através do Saara, pelo Mar Vermelho, pelo Oceano Índico, através do Atlântico - que o continente negro foi sangrado do seu capital humano. Pelo menos dez séculos (do IX ao XIX) de escravidão em benefício dos países muçulmanos. Mais de quatro séculos (do final de XV ao XIX) de comércio regular para construir as Américas e para a prosperidade dos Estados cristãos da Europa.
Acrescente-se a isto números, mesmo que muito controversos, vertiginosos. Quatro milhões de escravos exportados pelo Mar Vermelho, outros quatro milhões pelos portos suaílis do Oceano Índico, talvez nove milhões pelas caravanas transaarianas, onze a vinte milhões, segundo os autores, através do Oceano Atlântico.” (Le Monde Diplomatique, Manière de Voir, nº 58, 2001, republicado no Le Monde Diplomatique, Manière de Voir nº 82, 2005).
E estudos mais recentes - eu leio mais sobre o comércio no litoral austral africano - incrementam as quantidades e a complexidade das rotas, terrestres e marítimas. E também sobre o escravismo mediterrânico. Mas isso já não tem aqui relevância, remete para um debate mais especializado. Pois o que é notável é esta extensão da estratégia retórica para firmar uma ideologia, dando versões falsas da história.
Um longo texto para tentar refutar um discurso? Poucos dias após este discurso - sobre o qual haverá mais detalhes a discutir - a Conselheira de Estado e recente Presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho, foi ao Brasil. Em declarações numa Feira do Livro considerou que “até Portugal quer voltar a ser grande, inclusive [voltar] a esse passado colonial.”
Ora no Portugal democrático não há qualquer projecto neocolonial. Nem houve. Não há dinâmicas económicas e sociais que o pretendam. Não há estratégias políticas que o procurem - há sim, nesse âmbito político, uma quase infrutífera CPLP que apenas (um saudável “apenas”) tenta ser um espaço de ganhos diplomáticos mútuos. Nem há sequer discursos ideológicos influentes que o desejem. Há sim uma decadente ladainha “lusófona” - a qual o “campo literário” muito utilizou a seu bel-prazer. E algumas reminiscências de nostalgia colonial - em particular expressa nas franjas “lite” desse campo literário - mas que “nem chegam a ter expressão material e social”. E há resquícios de furibundismo, revanchista de complexado, entre alguns nichos já muito envelhecidos dos “regressados” de África. Assim, dizer que Portugal quer voltar ao passado colonial é uma falsidade.
Sobre essa matéria da história colonial, o que nós temos é algumas tiradas tonitruantes, demagógicas, do prof. Ventura e seus sequazes. E algumas tiradas tonitruantes, demagógicas, de alguns oponentes do prof. Ventura e seus sequazes. E, também, maus discursos de 10 Junho.
9. Finalmente, o discurso de Lídia Jorge teve um efeito inesperado, uma verdadeira serendipidade. Usou a metáfora racial, afirmou-nos com “sangue do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas…”.
Retomou assim, de modo fugaz, a velha questão dos nossos constituintes (raciais, genéticos, “étnicos”), que fossem base da afirmação de uma especificidade portuguesa - e nos apartassem dos espanhóis, em primeiro lugar. E a qual nos atribuiria predisposições e mentalidades peculiares. Matéria relevante para os intelectuais de XIX e inícios de XX, muito bem estudados pelo antropólogo João Leal (livro de acesso livre aqui).
Era essa a “Raça Portuguesa”, antes celebrada no 10 de Junho. A qual não foi uma construção racialista (ou racista), mas a delimitação de uma peculiar e distintiva mescla de constituintes “rácicos”, “genéticos”, “étnicos”, “culturais”, cujo peso relativo - os condimentos da mezinha - os intelectuais debatiam.
Lídia Jorge alargou de modo universal - racial mas também social - a abrangência desses tais “condimentos”: “A falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma… aqui ninguém tem sangue puro”. Foi por isso amplamente saudada, independentemente do que alguns poderão (poderemos) pensar sobre este tipo de metáforas racialistas.
Mas esta formulação tem a tal conclusão inesperada. Se nós, portugueses, somos uma mescla, então não deveremos ser apartados administrativamente através de categorias de índole “raciais” ou “étnicas”. Pois - e repito a citação da autora - “aqui ninguém tem sangue puro.” O Estado deve então classificar-nos administrativamente apenas pela nossa cidadania (nacionalidade).
Os nossos compatriotas descendentes de imigrantes e os actuais imigrantes serão diferentes? Somos racicamente diferentes deles? Seremos nós um compósito mais complexo, porventura nisso até superior? Ou serão eles também gentes oriundas de onde “ninguém tem sangue puro”? Eu presumo que ninguém defenderá (ou poucos o farão), de novo, a existência de uma Raça Portuguesa, diversa da dos nossos vizinhos imigrados e das suas descendências (e dos espanhóis, nunca esquecer…). Como tal, não se justifica classificar administrativamente esses indivíduos segundo categorias exclusivas, “rácicas” ou “étnicas”. Pois, tal como nós, eles são uma “soma”.
Por isso, apesar do desgosto tido com o discurso de Lídia Jorge, ri-me nas horas subsequentes ouvindo as loas que recebeu de tantos intelectuais e até políticos “identitaristas”, defensores do esquartejar “etno-racial” de Portugal. Constatando que mais depressa se apanha um demagogo - mesmo que não seja o prof. Ventura - do que um paraplégico.
Depois disso deitei-me “agasalhado na discreta sabedoria / de uma qualquer memória / deste ou de outro tempo”, como disse o moçambicano beirense Heliodoro Baptista. Deixando para outros - os tais demagogos - o furor de devastar a nossa “memória”.
Reproduzo um texto sobre estas matérias da utilização actual do passado colonial que coloquei em 2024 no meu blog de então, o Nenhures:
Passado Colonial (13 de Agosto de 2024)
(Isto não é um ensaio, e muito menos um artigo. É um desabafo. )
Na fotografia estou eu no Mossuril, impante quarentão ladeando o velho canhão pátrio. Não estava ali traumatizado, nem me sentia um Atlas com o peso da História aos ombros. Nem o devia estar. Nem sentir...
1. Para quem não saiba o Mossuril foi durante séculos um dos cais de embarque para a Ilha de Moçambique, que lhe está defronte. Esta - sempre romantizada, com laivos de poesia (há muita versalhada sobre o sítio) ou de devaneio turístico - foi sempre um entreposto, ali se carregavam as embarcações as quais seguiam Índico afora. E, como outras feitorias portuguesas em África (ditas "possessões"), sobreviveu séculos com as taxas alfandegárias e os ganhos comerciais dos... funcionários. Pois desde XVI - pelo menos - ali chegavam as caravanas vindas do interior, fronteiro ou muito distante. Trazidas por gentes várias que vieram a ser ditas macuas ("selvagens", na língua das gentes algo suaílizadas do litoral, pois vistos como inferiores boçais do mato), por ajauas, por outros. Algumas caravanas iam até ali, para Quelimane também, tal como ao Ibo, outras calcorreavam rumo a outros portos exportadores onde inexistiam portugueses, na demanda de melhores custos-benefícios.
Ao longo dos séculos vários foram os produtos transportados. A partir do primeiro quartel de XVIII e, acima de tudo, durante XIX o que mesmo cresceu, com enorme afinco - uma verdadeira "bolha" para falar como agora -, foi o comércio de escravos. Lá para meados de XIX isso foi ilegalizado mas continuou como "tráfico", e seguiu - assim mais lucrativo, qual bootleg da Lei Seca americana - até inícios de XX. Progressivamente mais difícil, e também mais raro, mas ainda assim numa azáfama de transportadores terrestres, vindos cada vez de mais longe, pagando portagens aos sucessivos "donos da terra" - tipo as chefaturas ekoni do interior de Cabo Delgado ou os namarrais que se chegaram à Ilha para cobrar ainda mais caro (mas a mitografia nacional veio a torná-los "heróicos", por se terem oposto à ocupação portuguesa). E uma azáfama de transportadores marítimos, árabes, suaílis, franceses, holandeses diz-se, brasileiros também e muitos. E portugueses.
Lá mesmo para o final, século XX já encetado, os portugueses (e julgo que também os franceses, mas assim apenas de memória não o posso afiançar) tiveram um episódio cristão bem denotativo: embarcavam-se os desgraçados, no convés estava um padre, "baptizava" as criaturas, elas "assinavam" um papel, e eram "elevadas" a cristãos trabalhadores livres, "contratados". E seguiam às ilhas índicas. (Vá lá, chamai herege a este ateu.) Depois isso acabou - dizia-se, e bem, "Britain rules the waves" e era cada vez mais difícil, pois esses não queriam mesmo tais práticas.
Já República feita, mandando a maçonaria e os antepassados dilectos do PS - mais os terroristas que hoje seriam do Bloco -, os portugueses adaptaram-se. E viraram-se para arregimentar gentes, enviando-as também como "contratados" para São Tomé, às roças que por lá medravam. Iam para a... vida toda. Seguiam tantos, e também recrutados para as minas sul-africanas (trabalho que dava gigantesco lucro ao... Estado, tipo os médicos cubanos de agora que pagamos a Havana, mas vivendo então bem pior), que os administradores do centro e norte contestavam tais práticas, pois faziam escassa a mão-de-obra por essas paragens, tão necessária para plantações (onde as havia) e para ... o trabalho forçado. Tudo isto está escrito, nos arquivos e em livros.
2. Nesse rumo foi-se instalando o colonialismo moderno, a "ocupação efectiva", de facto terminada lá pelos anos 20s. Na tal I República, trapalhona. E, depois, no Estado Novo, competente q.b., mesmo que se algo trôpego colónia adentro. O regime europeu em África foi bastante diversificado, consoante o país colonizador, os tipos de colonos chegados, as características dos colonizados. As especificidades de cada uma das colónias. Ainda assim tinha duas características básicas:
a) racismo: a crença na legitimidade da tutela exercida sobre os locais, pretos. Estes considerados inferiores por condição racial, assim individual e colectiva. Ou por um estado transitório, seu contexto, seu "atraso", assim também colectivo, mas possibilitando a ascensão "civilizacional" individual. Grosso modo, diferenças ditas como entre a visão segregacionista e a assimilacionista. Na administração portuguesa conviveram as duas visões, até mesmo coabitaram, desde a mais desbragada consideração da impossibilidade dos pretos ascenderem, até à crença de que "a seu tempo" evoluiriam a contento. Cerca de 1950 vingou a mais aprazível versão oficial assimilacionista - que tinha sido esfacelada desde a tal República -, aquilo de "os rapazes fazem-se…". E na década de 60 - após a reforma de Adriano Moreira, imposta não pela sua magnitude mas pelos "ventos da História" - as barreiras raciais administrativas foram muito aliviadas, as sociais algo matizadas, nesgas de assimilacionismo urbano medraram.
São essas nesgas que sempre surgem convocadas no memorialismo dos ex-colonos, a ladainha dos actuais sexagenários e septuagenários do "eu tinha indianos e mulatos, e até negros na minha turma de Liceu", "nós lá em casa tratávamos bem os empregados", "nunca vi racismo", "os pretos andavam na rua", etc. São estes aromas benevolentes que permitem que um tipo como Rui Ramos vá em 2024 à rádio disparatar "a descolonização começou em 1961", para encanto de Maria João Avillez - essa que eu ouvi, com estes ouvidos que o forno cremará, clamar diante de uma elite moçambicana muito crítica (demasiado crítica, em meu entender) "vocês não gostam de nós?, depois de tudo o que fizemos por vocês?!!". Isto não serve para entender o real. O passado. E um bocadinho do presente.
b) opressão e sobreexploração: as formas de opressão eram várias e os seus conteúdos diversos. Também há muita coisa escrita - sim, sei que muita da literatura anticolonial era muito militante, antes e depois das independências, a gente torce o nariz às formas selectivas dessas narrativas e análises. Mas é preciso não querer ver os âmbitos em que desvalorizações e a proibições eram exercidas para as ignorar, ou dulcificar.
E depois a sobrexploração. Dir-se-á (e bem) que em Portugal também os direitos laborais (e outros) eram escassos. Mas por ali eram diferentes: a corveia ("trabalho por papas") - para o Estado e para os privados que tivessem boas ligações com a administração - era pesadíssima. E imensa - e não é preciso ser um esquerdalho para relembrar isso, leia-se o bispo da Beira, Soares de Resende, um prelado conservador (um dos seus livros levou como título Ordem Anticomunista), exasperado com a apropriação continuada do trabalho africano. E as culturas comerciais forçadas, que eram imposições muito gravosas sobre os pequenos agricultores (quase toda a gente), praticadas em muitas áreas. Entenda-se, tudo isto se associava a castigos corporais recorrentes. Que as crianças e adolescentes urbanos não viam ou, pelo menos, não percebiam - e por isso, por não saírem do seu anacrónico saudosismo, continuam a remoer espúrias negações.
Após 1961, as reformas legislativas alteraram os regulamentos mais impositivos e discriminatórios. Pouco depois Salazar já falava de um futuro (imaginado como algo longínquo) de "comunidade de países lusófonos", conjugação de interesses e sentimentos sedimentada pela unidade da língua portuguesa - mas ainda não lhe ocorrera a necessidade de um novo acordo ortográfico.
Mas ainda que em alguns núcleos, particularmente urbanos, a situação se tivesse matizado, permitindo alguma mudança no acesso de nichos da população negra a serviços, até empregos, as formas de opressão e sobreexploração não desapareceram, pura e simplesmente. As práticas continuaram, avulsas porventura mas não apenas episódicas. Pois as categorias mentais, as concepções ordenadoras dos interrelacionamentos, mesmo sendo vividas de formas distintas tanto por colonos como por colonizados, não desaparecem num ápice (como clamam os "críticos" actuais, no histrionismo de apontarem perenidade imorredoira entre os portugueses das formas extremas do ideário colonial), nem as condições económicas casam com imediatas alterações radicais, principalmente se sob uma administração autoritária e socialmente enviesada.
3. E em tudo isto a repressão. Em Portugal vivemos não só o cinquentenário dos "gloriosos capitães de Abril" como continuamos a louvar a "resistência antifascista". Ora o 28 de Maio e o subsequente Estado Novo advieram da devastada e perversa I República - e 2010 podia ter-nos ensinado isso, mas não vejo ninguém na imprensa (no "Público" ou quejandos) a insistentemente exigir o ensino dos detalhes da trapalhada republicana aos petizes do secundário... E a ditadura salazarista sobreviveu décadas com a anuência de forças armadas, policiais e da... população.
Houve repressão, claro. A qual depois da II Guerra Mundial se atenuou (os tais "ventos da História"). Continua-se a ouvir falar das desgraçadas mortes de José Dias Coelho ou Catarina Eufémia (Delgado é um caso muito diverso) mas o certo é que mortandade foi escassa. Não estou a dizer que foi uma ditamole. Mas sim que tal como o tratamento dado aos presos políticos "doutores" ou "filhos de doutores" era diferente do dado aos do "povo", também a repressão em África era muito mais carregada.
É 1994, meu primeiro trabalho em Moçambique, estou em casa de Namwenda, um velho régulo, chefe mwekoni, está também Kolokoha, seu congénere - ambos postos da antiga chefatura macua-meto Inkigiri, dessas que in illo tempore haviam estado metidas até aos pescoços no comércio escravista. E mais uma dúzia de homens velhos, conselheiros, cabecilhas de parentelas. Eu estou a perguntar sobre as transições agrícolas do tempo colonial até àquele presente - mas deixo a conversa, animada, divagar. Até porque o que me interessa nem são as tais mudanças, estas são só pretexto. Contam-me que "antes de ter entrado a Frelimo", durante a "guerra dos macondes", os portugueses prenderam vários chefes macuas - entre os quais Namwenda - e levaram-nos para a prisão do Ibo. De sevícias em sevícias alguns haviam morrido, outros depois foram levados para a Machava (então Lourenço Marques) e desaparecido. Eram camponeses, macuas, nada tinham a ver com a guerra de independência - todos os que tenham visto filmes de guerra, tipo "Vietname", reconhecem a situação: passam os guerrilheiros a população encolhe-se, vêm os dos exércitos regulares e acusam-nos de cumplicidade e reprimem. Mas só ali, naquele episódio, já se fizera uma mole de "José Dias Coelho".
A conversa segue, longa tarde. Eu sei que o gravador cerceia a liberdade alheia e por isso escrevo, frenético, o que me vão dizendo. Voltamos à agricultura, ali chegou um projecto de incentivos à cultura comercial de milho e também de tabaco. Pergunto como eram os incentivos no tempo colonial. Sobre esse "fomento" logo falam da palmatoada, e descrevem - quem não cumprisse as quotas de produção era severamente batido. Eu sou jovem, inexperiente, e deixo escapar um esgar, impressionado. Namwenda fala, sorrindo, e todos se riem, pergunto a Tomás Brito, meu intérprete, qual a piada. Ele responde, traduzindo: "não foi você!". E todos se riem, percebendo o que está a ser traduzido mesmo que não entendam português. Eu sorrio e penso "foda-se!", "que lição!".
4. Ultimamente o tópico do "passado colonial" (de facto os do passados pré-colonial e colonial) tem sido sugado por um feixe de jornalistas e académicos oriundos de partidos de origens comunistas. As abordagens são panfletárias, enviesadas. As aleivosias historiográficas são constantes, as tiradas demagógicas comuns. Ora não me parece que seja necessário doirar a pílula do passado - o qual, aliás ,está patente em vários textos consistentes, e disseminados, e é interesseiro que esta gente surja repetidamente anunciando um estado de inocência da sociedade portuguesa sobre o seu passado.
Muito mais do que discutir as mariolices que se vão escrevendo conviria perscrutar a agenda política que tem essa minoria altissonante. De uma forma mansa poderei convocar a ideia de patriotismo de Orwell, que o disse um "conforto identitário". E o que esta extrema-esquerda identitarista deseja é romper o nosso "conforto identitário" português. Mas qual a sua agenda mais profunda, para além das pequenas benesses estatutárias (o apreço dos pares, por exemplo) e de pequenos financiamentos (os projectos, as performances, os colóquios)?
Cada um interprete como queira as ambições desta gente, neste seu afã de demonizar um passado que encerra numa visão que quer ser bicromática, a do mal e do bem, insensível à miríade de situações que - mesmo neste enquadramento colonialista - foram vividas. E que quer apagar os múltiplos reflexos e refracções que as variadíssimas dimensões do colonialismo tiveram e têm, em Portugal. E, mas isso então é que nada lhes interessa, nos países africanos antigas colónias.
O que me é relevante é não ser preciso higienizar o colonialismo, ou mesmo vasculhar em busca de um ou outro aspecto menos opressor para o poder contrapor, para perceber que estes tipos d'agora não querem entender melhor a História. Querem aldrabar - como o socratista Vale de Almeida quando clama ser Portugal um apartheid. Ou querem exercer a sua patética candura - como o (ex?)comunista Francisco Bethencourt quando vem perorar que é preciso pagar "reparações" para que as sociedades tenham um melhor relacionamento futuro.
Há tempos conversava com um antigo - e excepcional - meu professor, PC "dos tempos", homem de esquerda profunda, o qual deve ter andado por esses movimentos pós-Perestroika, nem perguntei, e também ele incomodado com estas constantes patacoadas: "estes tipos sentem um défice de não terem feito a luta antifascista, anticolonialista, não tinham idade para isso, então afocinham agora nisto...", rematou. Ri-me, claro, concordando em parte, pois alguma coisa virá desse pobre entendimento autobiográfico.
Mas não basta como explicação global. Pois isto se faz pagar. Até a Gulbenkian, como vimos há pouco tempo, paga esta tralha.