Percebi-o há alguns meses, parente que me é íntima associa-me - à modesta escala da minha verve - a Ignatious T. Reilly, o ominoso reaccionário obeso insano, esse aparente proto-iconoclasta protagonista do "Uma Conspiração de Estúpidos", o quase-único livro de John Kennedy Toole. Ver-me-á, a minha querida familiar, fervoroso militante desse reillyanismo de "Recuso-me a melhorar. O optimismo enoja-me. É uma perversão. Desde o pecado original que no universo o lugar mais adequado para o homem é a sua própria miséria".
Decerto que por toda essa razão, convidou-me a acompanhá-la a Lagos para uma conversa sobre o livro - convívio que aconteceria no Clube de Leitura local, de reunião mensal na biblioteca municipal, a Júlio Dantas. Atrapalhei-me com a proposta, timorato dado há muito habitar esta galé do silêncio. E também por não ser aquela - a literatura - a minha faina… Mas é a dela, que sabe da poda, e eu iria apenas para ombrear. Ao ouvi-la assomou-me uma memória, que me foi então salvífica: uma leitura no milénio passado da proposta de uma “república de escritores e leitores” de onde se baniriam os exegetas, os críticos e autores de recensões… Nisso me respaldei, no remanso de “ir sem doutorices” - como me murmurei. Como tal prevaleceram os “laços de sangue” e anuí à proposta.
E ainda bem! Melhor dizendo: e muito ainda bem! Pois encontrei - congregado numa biblioteca que é evidente ser mesmo animada (a diferença que faz uma direcção militante…!) - um grupo leitor credor dos superlativos de interessado, empenhado, polemizador, divertido. E… gentil. Gentileza tanta que a este avatar do tal Ignatious logo promoveram a “Tio Zé”. E me vêm convidando para amiúde lá voltar, nisto de conversar sobre livros. Fui agora, no 23 de Abril, para as comemorações na Júlio Dantas do Dia Mundial do Livro. O meu pretexto era o “Contos” de Flaubert.
Em dia de semana - e porque agora dotado do tão motriz passe verde - parti do templo calvinista sito na foz do Trancão, o desabrigo obra daquele arquitecto afinal pagão animista. Mas ainda se na ferrovia não ia repousado. Pois regressara a Flaubert após anos de ausência, e o perorar exigir-me-ia um expurgo, a fuga ao rumo encantatório do mestre (sim, mestre) Bourdieu - que ao escritor escalpara naquela sua forma tão cruel, ainda que ao sacrifício efectuado tenha disfarçado de cerimonial cultual, e pedagógico.
E mais ainda - pois coisa muito actual -, neste agora falar do autor do “oriental” “Herodíade” - e até do “São Julião Hospitaleiro” - obrigar-me-ia a desenfiar face aos ditames do tão refinado palestiano, esse do “a escrita (autoral) pertence a um sistema de expressões que tem todo o tipo de relações afiliativas, muitas vezes restritivas, com o mundo das nações”. Pois daí à exigência - não pelo douto de Jerusálem, refinadíssimo repito-o, mas pelo enxame de seus seguidores - de “denúncia” da violência “extractivista” de um qualquer escritor (se “branco”) vai um passo. “Denúncia” ou mesmo “cancelamento”! Pois não escreveu Flaubert sobre o tão “literário” Absinto: “Veneno de extrema violência: um copo morre-se. Os jornalistas bebem-no enquanto escrevem os seus artigos. Matou mais soldados do que os beduínos.” - assim demonstrando insensibilidade diante do colonialismo e menosprezo (para não dizer pior) pelos magrebinos…
De tudo isso defendi-me, até de modo inconsciente. Encarnando. É evidente que já não um qualquer Léon, Rodolphe ou Fréderic. Pois segui a Lagos exacto Dr Mathurin, mesmo sabendo-me desprovido da sua tão bela figura, de olhos azuis puros e límpidos, e dentes brancos e finos… Ainda se nessa condição deixei-me - devaneios oriundos desta minha solidão - imaginar bovarice na passageira sentada diante de mim. Aparentava-se ela nas cercanias dos cinquenta (a balzaquiana de hoje). Ia bonita, mesmo se sob um nariz pouco arrebitado - até algo canino, diria um malvado ou, pior, uma invejosa -, numa robustez equilibrada, nada desvendada mas apresentada no seu traje quase descuidado: anorak acinzentado e já desbotado sobre casaco de malha azul claro, capeando camisa listada azul-e-branco, calças jeans ainda coloridas, botinhas acastanhadas em bom estado. Ao cabelo embrulha-o nesta comum mas tristonha cor de cobre, e afixa aquele latão doirado no anelar, anúncio de divorciada. Após a Páscoa regressava da capital ao (seu?) Algarve - o baço do olhar, perdido no dedilhar telefónico, não a denotava após encontro maternal, iria mais de visitar os velhos pais, já acantonados numa qualquer “residência”. Ou, talvez, de uma consulta médica, de especialista - espero que não na “Fundação”, longe vá o agoiro. Sentindo-me velho, e considerando que um cacho demasiado maduro deixa de ter sabor, fiz o que (quase) sempre fiz no passado…
Apartámo-nos em Tunes, onde transbordei para a via do Barlavento. Seguiu o comboio cheio. E, ao invés dos rumores que grassam em Lisboa, tinha alguns, poucos, passageiros portugueses.
Durante a adolescência tardia várias vezes lá fui, mas poucas memórias me restam dessa Lagos, então apenas vasculhada em noites inebriantes após estremunhados dias de praia. Mas soube-a um pouco melhor quando a visitava mais tarde, já casado. Palmilhei-a agora, recuperando-a um pouco - trintando-me, quarentando-me. Como sempre cruzando a que até há bem pouco foi a casa da família “da mãe da Carolina”. E depois deambulando pela zona “histórica”: nisso reforçando o meu sossego de passeante nada “póscolonial”, constatando que a cidade segue até ufana dos seus monumentos ao rei antimagrebino e ao benemérito escravista. É evidente que as brigadas “correctistas” quando saem do seu frenesim no eixo Campo Grande-Campolide vão em mero turismo…
Nesse meu rumo esgarcei-me em busca do Olive Hostal, querendo conhecer o muito elogiado poiso de amigos que tiveram negócios similares na Ilha de Moçambique e em Nampula - os quais bem conheci e frequentei -, e que há algum tempo se estabeleceram ali. Desconsegui, maldizendo as indicações dos programas de orientação telefónicos - “siga à direita, e à esquerda, e à direita… etc.”, conduzindo-nos até à perdição. Que saudades do antigo “por favor, pode-me dizer onde é…?”, mas já ninguém sabe! E, para além disso, ali (quase) só há estrangeiros, pululando na fiada de restaurantes, bares, bares, restaurantes…
Dirigi-me, procurando coito, ao meu sítio preferido na cidade: o “Com Espinhas”, pequeno e muito recomendável restaurante - ao “D. Sebastião” - de boa amiga, conhecimento feito em Maputo. Estava ainda fechado…, teria de voltar mais tarde, o que vim a fazer. Mas não sem antes ter percebido melhor esta angustiante escassez de água no Algarve. Pois, sequioso naquele Abril soalheiro, constatei que um chafariz lacobrigense está provido de um repuxo… exótico, saheliano se se quiser ilustrar.
Enfim, ia eu resmungando com estas tecnologias modernas, com a sede, comigo mesmo, num “a falta que me faz um mapa” e dou com uma livraria (aleluia!), em plena marginal. Anunciando a venda de “mapas militares”, esses sempre minuciosos, certeiros, exactamente aquilo pelo qual tanto suspirava! Não estava eu assim tão errado! Puxei da carteira. Mas, em simultâneo, voei dali, até à Tapada de Mafra e alargadas cercanias, mochila com vinte quilos às custas, a “namorada” (malvado sarcasmo militar…) a tiracolo, exausto a olhar para as nebulosas esquadrias. Ou, pior, para as montanhas bósnias, ali perdido em terreno minado devido a um nórdico incompetente leitor de mapas… militares, “coronel” dizia-se - susto maior na minha vida, tamanho que o contei aqui, e o agreguei tão depois no meu “Torna-Viagem”.
E assim não comprei o mapa. Militar. Tal como não comprei o livro da bloguista Lucy Pepper - uma inglesa consabida especialista em culinária portuguesa -, cujas edições em várias línguas abrilhantavam aquele escaparate. Quando regressar a Lagos, prometo-me, de novo vasculharei as ruas em busca do Olive Hostal. E comprarei o “Comer Como um Português”…
Após tudo isto avancei até à Biblioteca, ao programa celebratório. A gente sabe que os lisboetas são blasés. Há quem - em particular no Porto - a isso chame “centralismo”; mas é erro pois trata-se mesmo de “cagança”, mundividência feita do tal blaseísmo, um galicismo mais educado. E nisso tendem sempre a desvalorizar o que esperam no restante rincão - e a sobrevalorizar o presente além-Pirinéus.
Eu não sou blasé, devido a um feixe de razões: pois não sou de “lisboa”, sou dos Olivais em Lisboa, o que é uma coisa, natureza, diferente; porque vivi muitos anos em Moçambique e nisso “lisboa” estranhou-se-me, desentranhou-se-me; e porque - tal como muitos se dizem “antifascistas”, “anticomunistas”, “antinãoseioquê” -, eu de ideologia tenho mesmo é a “antiblaseísta”, meu precioso alfobre de ira.
Mas, e ainda assim, ali aportara sem esperar tanto. De início alguns membros do Centro de Estudos de Lagos e outros companheiros do Clube de Leitura (não lhes vou chamar “colegas” - termo que me arrepia, ainda por cima; nem “camaradas” ou “sócios”, desadequados pois não partilhamos nem empresas nem camaratas) lemos rotativamente alto, e a bom som, o “Um Coração Simples”. E depois - até por minha proposta - saltámos para a leitura do “Herodíade”, a espantosa imaginação da maldita dança de Salomé: essa que Moreau pintara e, nesse seu modo, tanto impressionara o escritor.
Antes, num repente, eu abandonara Mathurin, aquele incréu insensível. Pois ali escutando o “Um Coração Simples”, o cruel roteiro da desventura de Felicité - a pobre e velha criada, ignorante, analfabeta, tão só e desamada, mera súmula de perdas. A quem no fim da vida, no seu tugúrio, só restava o amor, paixão mesmo, dedicada ao seu papagaio embalsamado, o qual resguardava num altar preenchido de pobre bric-a-brac (“num fetichismo”, dirão alguns dos insuportáveis exegetas críticos).
E nesse entretanto, audível, todo eu caí num #JeSuisFelicité, trôpego, perdido, sozinho, abandonado diante do meu altar. Feito do pouco que me resta, pobres relíquias do que foi. As quais, de supetão, ali me visitaram: o minúsculo cavalo-marinho embalsamado da minha mãe, uma qualquer medalha esmaecida, de basquete ou da república, o bilhete do Lou Reed, o rasgado poster a cores do Sporting 1973-4, debruado com fita-cola, umas caixinhas de artesanato moçambicano, desengonçadas e desengraçadas, a capa do single “Money”, a velha moeda espalmada e ilegível que o querido Jorge Forjaz me deu na Ilha de Moçambique, a página autografada na Portela por Carlos Lopes, Mamede, Carlos Cabral e Aniceto Simões quando campeões europeus de corta-mato, o chilon que o Sandro deu à cave, o relógio do meu pai, o cromo 71 do Carlos Pereira já no Estoril - o mais difícil da colecção -, a minha pequena foto com a Carolina, que a velha Helena (ela própria uma quase-Felicité) em Palmela carinhosamente mandou emoldurar para mim, o colar maçónico do avô Flávio… E fiquei - lisboeta mas dos Olivais, ali em Lagos - de lágrimas nos olhos (“f…-se, não vou chorar aqui, c….”, avisei-me em modo mudo mas ríspido, até castigador).
E, de súbito, aquele que lia o final do conto - “e, quando (Felicité) exalou o seu último suspiro, julgou ver, nos céus entreabertos, um papagaio gigantesco, planando-lhe sobre a cabeça” - riu-se, tirando-me daquele meu torpor. E dando(-me) assim imensa lição (ou melhor, conselho) sobre a grandeza da grande literatura: isto de dela se retirarem inúmeros sentidos, “cada leitor como cada qual” e, talvez acima de tudo, consoante o seu momento.
Escapei-me para esfumaçar, nisso exorcizando-me da velha Felicité. Depois envolvi-me, até lendo-as em voz que quis atrevida, nas malevolências assassinas da Salomé, retornando-me! Seguiu-se uma sessão musical: Maria João Cerol, em solo de flauta tocou J. S. Bach, J. C. F. Bach e Debussy, e eu baloiçando de novo, despreparado para aquele rumo, o do âmago.
Seguiram-se tréguas. Um aprazível lanche, farto e divertido, saciou os membros do Clube de Leitura: “cinco estrelas” diz-se em Lisboa, “porreiro”, afiançamos nós, os dos Olivais. Agarrei-me à garrafa de água, que me foi retirada por mãos feitas amigas, e assim beberiquei, cuidadosamente - sou uma sombra do que fui -, um copito de vinho tinto. Já saciados, mas não de palavras, juntámo-nos para o afinal filet mignon: a nossa conversa sobre os “Três Contos” - “falaste demasiado” vieram-me a dizer, decerto que certeiramente. “Estava comovido”, não respondi eu… Estou velho, digo agora…, pingo no nariz, cabelos nas orelhas, lagrimazita fácil, algo mouco… Vários leitores falaram, diversas opiniões e apreços, como “deve de ser…”. Eu levara de Lisboa o “Últimas Páginas” do Eça de (ainda) Queiroz (Lello & Irmão, 1942), carregado das histórias de santos dele - li, num algures que não recordo, que são um bocado fajutas, mas isso pouco interessa. Até porque não houve tempo para elas. Mas houve, e ainda bem, para um magnífico contributo, um dos participantes levou o seu precioso “A Lenda de São Julião Hospitaleiro” ilustrado por Amadeo Souza-Cardoso - do qual a biblioteca passou a ter um exemplar -, e mostrou-o a todos nós com o detalhe possível.
E após tudo isto ainda houve um espectáculo com o Trio Pedro Rijo (Pedro Rijo no saxofone, Diogo Costa na guitarra e João Segurado no contrabaixo). Que grande celebração, a desta Biblioteca Municipal Júlio Dantas. Fiz uma vénia! - até porque, honestamente, já estava a tombar da tripeça.
Recolhi-me ao o Tivoli que me albergava. Muito aprazível, e desde logo na sua arquitectura. Algo labiríntica, nada como a disposição impessoal reinante na “indústria”. Nem exactamente como o estipulado “estilo algarvio” ou lá como se chama a isso. E encontrei-o dotado de pessoal muito simpático - fenómeno não universal.
A ele aludo devido a razão (e não por qualquer patrocínio…), que pode interessar a quem me esteja a acompanhar: tinha muita clientela, a esmagadora maioria sendo estrangeira. À noite encontrara vários grupos de homens (meia-idade, britânicos) - gente do golfe, interpretaram-me casa os meus amigos disso praticantes, aquando já regressado a casa… E na manhã, que para mim foi pouco matutina, muitas famílias e casais, idades mais variadas - britânicos mas também audíveis franceses. E de outras origens, decerto. Se não era eu o único português presente pouco faltaria. Ora, e é esse o busílis desta minha referência, notei um detalhe na vasta sala de pequeno-almoço, para mim precioso, digno de ovação: não havia ninguém, ninguém mesmo, trajando camisa de alças.
Enfim, terminava a minha estada em Lagos. Durante o mata-bicho bebi vários copos de Compal de tomate - o melhor sumo do mundo, menos louvado pelos portugueses do que aquilo que deveria ser, pois verdadeiro património nacional. Tangível. Diante dele ocorreu-me acorrer ao bar para um Bloody Mary. Ainda não era meio-dia, desculpei-me - “um cavalheiro não bebe antes do meio-dia”, isso seria quase tão mau como fazer uma tatuagem, avisei-me. Cruzado o meio-dia inventei uma outra qualquer desculpa, tão despicienda que a vim a esquecer. Estar em Lagos e negar-me, baldar-me, a um Bloody Mary apetecido! Caramba!, o que a vida te fez, Zezé!
No regresso, no bar do comboio continuava a comemoração do Dia Mundial do Livro, acontecido na véspera. Ali ainda vigorava uma iniciativa da Biblioteca de Faro, livros para serem levados… Em inglês, que deixei. E um molhe de “O Algarve na Poesia”, uma colectânea publicada pela Universidade do Algarve em…1982, da qual me servi. Estão os exemplares em belíssimo estado: imaginei-os décadas esconsos, mas bem acondicionados, num qualquer armazém. Belíssima ideia, esta de os distribuir. Agrega Sophia, Ramos Rosa, Júdice, alguns mais antigos, Garrett, Pascoaes, João Lúcio, mais outros, afamados uns, outros não tantos. Uma boa prenda!
Li logo no comboio, mais emperrando naqueles poemas de outros tempos dedicados às belezas ou características de sítios específicos: Praia da Rocha, Cacela, Tavira, Sagres, Ferragudo, até o próprio Algarve. Quem hoje lhes votará loas? E como? Leio “A Praia da Rocha” de Emiliano da Costa, “o fóssil ri na floração perene:…”, de 1931. E lembro-me do verdadeiro desespero do meu pai António, em Setembro de 1974 quando ali fomos. Havia sido seu local de férias nos anos de 1940s e de alguma estroina posterior. Não tinha lá ido desde que casara - “prisioneiro” do São Martinho do Porto familiar. E clamava, já nesse 74, “o que fizeram eles disto!!!!”. Ou seja, quem irá cantar o Algarve, cinquenta anos depois disso?!
Mas, sublinho, Lagos vale a pena. E a sua Júlio Dantas também. Voltarei lá, em breve. Mas já não como Mathurin. Pois dessa vez irei de verme. Monstruoso.