(Biblioteca de Évora, 12 de Abril de 2025. Apresentação do meu "Torna-Viagem", autopublicação na plataforma editorial bookmundo, o qual se compra através desta ligação: https://publishpt.bookmundo.com/books/366121 .)
"A minha vida dava um romance" tantos ameaçam, ao que logo respondo, contumaz leitor: "por amor da santinha, não o escreva"... Pois isso de narrar os passos próprios vem mero egocentrismo, este reforçado se embrulhado em meneios de profundidade e excentricidade autoral. E pior ainda se em arremedo (sempre semi)ficcional. Disso se salvam poucos - e pouco -, os dotados da verve, daquela "qualquer coisa" que nem se sabe definir... Sei estar em voga - até muito premiada - isso da "autoficção", detalhada. Mas, caramba!, se é para prosa de registo "etnográfico" então deixem-na para os de nós, antropólogos, que a essa se dedicam. Pois, para o resto?, estou com o Tim e os Xutos: "Conta-me histórias daquilo que eu não vi"..."E eu amo-te a ti".
Enfim, mesmo isso sabendo - e sem pudor pois sempre fiel ao dever da incoerência - coligi os meus passos havidos neste meu "Torna-Viagem", uma centena de croniquetas memórias. Nada ficcionais, asseguro. E autopubliquei-o em registo editorial dito, e com propriedade, "vanity press". Mas com a vantagem, até ética, de o ter feito via uma plataforma editorial, daquelas da "impressão por encomenda". Assim sem pagar para tal - como o fazem tantos dos meus colegas da vaidade, nisso pobres almas financiando editoras fajutas, esbanjando os seus parcos pecúlios a troco de falsárias promessas de divulgação, distribuição e, acima de tudo, "reconhecimento".
Pois nestas coisas é mesmo esse tal "reconhecimento" a moeda procurada. Ontem fui ao Tabernáculo do Hernâni com uma amiga dos anos 1980 - apareceu-me imune, bela como se naquele antes -, a entregar-lhe o exemplar que me encomendara devido a amigo comum lhe ter gabado o livro: é essa a melhor forma de divulgação, como se sabe... Serviu assim o "Torna-Viagem" para nos reencontrarmos, sabermo-nos. E descobri-a agora minha colega, "sedentários digitais", meio aflitos ao teclado pois "já ninguém paga a quem escreve", concordámos. Lamentou ela, solidária - "querida amiga de querida amiga, querida amiga é!", gatafunhei-lhe o livro com toda e dorida franqueza do ainda luto comum - a falta de prestígio disto da "autopublicação", a velha "edição de autor"...
Sorrio, pois essa não me é matéria. Esta publicação foi apenas a minha forma assumida - como o referi em Évora no sábado passado - da (vã?) luta contra a irrelevância própria, característica que me é qualidade e vice-versa (e não só a mim...) - "não precisas de desabafar assim", lamentou(-me) ali uma (também) querida amiga, comadre antropóloga. Mas, e sendo franco, não só isso me conduziu. Antes o meu amigo Nuno Quadros publicara o seu livro de memórias, o qual muito bem intitulou "Antes que a gente morra". E é bem isso, a nossa geração chegada a esta era inicial do ocaso, urge juntarmo-nos, contarmo-nos, celebrar o que vamos fazendo, sendo - e nisso até sacudir a derradeira poeira pandémica que tanto nos ensimesmou. E também para isso julguei ser o livrinho um bom pretexto.
Há um ano foi o Roda Viva meu mecenas, então colhendo eu o maior elogio literário: "isto sim, Zezé, é um lançamento de um livro!", largas dezenas de amigos transbordando beco do Mexias afora, do fim da tarde até à 1.30 h. E só com breves arengas iniciais, a do meu camarada Fernando Florêncio e a minha, mais autojustificativa - e demasiado comovida, devido a inopinadas e tristes questões pessoais, então surgidas. O resto?, o "estarmos juntos"...
E depois segui só impingindo o livro na internet, o qual se ia disseminando além das expectativas, muito pela solidariedade de veteranos confrades, as réstias de "blogosfera". Ou de raras simpáticas atenções da pouca imprensa atreita a olhar a tal menosprezada... autopublicação.
Mas há meses uma antiga colega convidou-me para apresentar o "Torna-Viagem" na biblioteca de Setúbal. Descobri-me almocreve livreiro! Avancei ombreado, e assim legitimado, pela escritora Patrícia Portela - ali presente pois protegendo o "irmão da mãe", obrigações avunculares que também temos, mesmo sem sermos os Tsongas de Moçambique contados pelos gigantes Junod e Radcliffe-Brown. Apresentei-me amparado por uma heterogénea quarentena de amigos, fazendo nós um memorável bom dia - entre a exposição do Miguel Navas e lauto repasto na capital do choco frito.
E essa escolta é sempre fundamental. Pois uma apresentação de livro não é coisa "sexy". Exceptuando, dizem-me, se com autores renomados - ou televisivos -, tende à reunião de escassos amigos e, vá lá, com alguns colegas menos desconfiados... Para mais se "fora de portas", o escrevente ido alhures, em busca de dádivas de ânimo. Mas esmorecendo-se, acolhido por amornados elogios e, talvez, alguns parcos locais curiosos ou desocupados e, decerto, cabeceantes.
Agora, neste último sábado, fui à biblioteca de Évora, a convite da sua tão estimável directora Zélia Parreira. Foi um dia... adorável! Mais uma vez se juntou um grupo de escolta ao almocreve, uma heterogénea trintena de amigos camaradas, oriundos de diversas eras. Alguns seguimos de comboio - eu agora portador do tão apreciável passe ferroviário, o qual me permite sonhar-me "on the road". E no "cavalo de ferro", ida e volta, foi uma animação - logo colonizámos o vagão-Bar - cruzando o planalto alentejano. Sim, planalto, pois sabendo que me aprestava a nele vigorar, breve que fosse, mergulhei no belíssimo "Com Poejos e Outras Ervas", do geólogo Galopim de Carvalho, um delicioso livro de (aliás, com) gastronomia alentejana, legado da Senhora minha mãe, que tanto ensina, bem para além dos comeres.
E assim, ali sobre carris, comecei o - memorável - dia a ser ofertado pelo recentíssimo (apresentado na véspera) "Toque de Jazz" do Zé Navarro de Andrade, um "Dicionário Subjectivo" que desde já afianço surge precioso - imprescindível até, em particular para os que não somos os "amadores" de jazz, esse clã tão peculiar...
À ida e à volta reinou a verrina, loquaz. A Rita, amiga nova - feita na compra do livro - contestou, tão certeira - pertinência nossa, pois só presente, até típica, em quem vive fora -, a exigência da CP da apresentação do cartão de cidadão ao comprar bilhetes, vigente na "aplicação". Isso face a estações de bilheteiras fechadas e máquinas inexistentes. Vivemos num Estado totalitário?, de cidadãos adormecidos? em breve terei de me identificar sempre que apanho o metro, o autocarro?
Eu sorri, azedo, recordando o desprezo que senti, aquando então recente torna-viagem, diante desse evidente servilismo burguesote - para exemplo, que me desesperou, a FCT a exigir a identificação via NIF e não através do cartão de cidadão, assim despromovendo os "cientistas" de cidadãos a meros "utentes"… E logo ali um dos convivas nos lembra a sempre fundamental - mesmo que algo artificiosa - distinção entre "pensamento analítico" (em desuso) e o "pensamento crítico", este agora predominante em formato festivo, dito "activista", como é notório, em especial entre antropólogos ("não precisas de desabafar assim", repito o mimoso dito da minha belíssima comadre ali em Évora). Ou seja, àquele vagão-Bar tornámos palco de vigoroso "seminário", e assim continuou...
Enfim, mas bem antes havíamos calcorreado do apeadeiro eborense até à Praça do Giraldo, onde a trintena internacional se congregou para o fundamental almoço. Évora fervilha de ofertas gastronómicas, as recomendações eram múltiplas... Mas em muitíssima boa hora fomos encaminhados para a "Associação Cultural É Neste País". Comer em Évora?, é ali, afianço! Pois o repasto colheu ovação unânime, de pé! E não se pedia "bis", "mais uma", pois todos deveras saciados até à exaustão... Avançáramos por um trilho iniciado por uma deliciosa pasta (patê, dirão os burguesotes) de azeitona, ladeada por umas cornucópias de queijo e noz de estalo, seguiram-se migas de espargos com carne de alguidar, as quais continuam - dias depois, e decerto assim continuarão - a ser louvadas, até mesmo pelos eborenses de gema que estavam, clandestinos, à mesa.
Entretanto alguns estrangeiros, sob curiosidade etnográfica, associavam o repasto à sopa alentejana, a qual os fazia querer imigrar, em definitivo, para este rincão soalheiro. E corria, abundante, uma aprazível limonada - a qual não provei - e um Calisto de Reguengos, esse com o evidente defeito de se deixar beber com volúpia, demasiada até para quem se aprestava a falar em público. Tudo isto orlado, antes da saída, com deliciosas nêsperas, que amiga trouxera de Lagos. E o preço final? Honestíssimo, coisa condigna do meu saudoso pai, o Camarada Pimentel - que ali, naquela velha Évora, essa "como deve de ser", tanto me faltou. Mas o melhor de tudo naquela "Associação Cultural É Neste País"? O serviço!, que a todos nós fez "amigos"... Vénia. Grata.
E seguimos à sessão, ao tal livro-pretexto. Em sala cheia na magnífica Biblioteca de Évora. A sua Directora Zélia Parreira apresentou-nos - eu comovido, dado que ali apareceram locais, entre os quais antigo confrade bloguista que eu desconhecia para além das velhas colunas de "links", uma amiga que me recordou, por associação, duas paixões, uma bem antiga, uma ainda quase recente (raisparta!, o que a gente perde na vida...!, nisso mesmo a vida…!). E até o companheiro Lopes, agora também ele feito torna-viagem, "dá cá um abraço!", esse que eu conheci via os meus tão queridos Paulo Gentil e Kok Nam (estão no livro, estão no livro...), e com o qual acamaradei mais nos meus “tempos” na Ilha, quando geria ele o lendário "Relíquias". "Estás bem, Lopes?", esparvoei... "Estou, pá, vai-se andando", "mas é aquela nostalgia, a gente lá é que está bem", sai-se ele com o sorriso entristecido e eu, já do tal Calisto abastecido, num gaguejado "pois!", até com o lacrimejar de velhinho..., malvada a vida que nos apartou daquele nós-mesmos.
Depois falou o José Paulo Pinto Lobo, escritor moçambicano há décadas cá residente - deixo o seu texto abaixo. Que tanto me comoveu - quero crer que quem nunca tenha vivido em Moçambique não capte a intensidade do que nele me deu, do que dele recebi (caramba, ao dedicar-me ele o lendário "eu bebeu suruma" do Nogar ia eu, apesar da minha cultivada rusticidade, desabando). Era ali, como o José Paulo disse, a segunda vez que nos víamos, perguntando-se ele qual a razão do meu convite... Porque somos reais amigos digitais, afianço. Mas também porque sempre nos vi como "o verso e o anverso" - sim, não somos o Knopfli e o Craveirinha, para quem a expressão foi criada. Mas, e à nossa medida, é assim que nos vejo. Obrigado, camarada, "compatriota" neste nosso mundo, por tudo. E por sábado, também...
Seguiu-se um animado debate, no qual eu - como é meu mau costume - me espalhei um bocado: "não precisavas de desabafar assim", não sei se já aqui deixei o que logo me disse uma magnífica amiga... Mas também avançando novidades, efusivamente saudadas. Pois amigo olivalense, há décadas transposto para a área das agora propagandeadas “aldeias do xisto”, me desafiara - na sagacidade de perceber “o teu livrinho é mero pretexto” - para repetir a apresentação lá na “zona da capital da Chanfana”. E logo ali, em plena sala, se iniciaram os preparos para a partida… Tal como também se contabilizavam os integrantes da escolta para a investida ao Algarve, desafiada por outra amiga “digital” - essa também dos tempos dos blogs - quiçá Lagos, porventura Faro. E ainda não se sabia o desafio, logo depois recebido - outro olivalense, esta tribo com deuses e ateísmos próprios -, de se avançar, “Torna-Viagem” em punho, até Alcácer do Sal…
Seguiu-se a visita à biblioteca, tutelada pela sua Directora. Um encanto - um mundo, lindíssimo, administrado com enorme empenho e sageza, por uma estreita equipa de evidente extrema dedicação. E no seu final um - breve mas esplêndido - mergulho nos livros antigos. Entre os quais um com esta deliciosa Virgem Amamentando, claro que prévia ao concílio de Trento, no qual foram proibidas estas representações. E, para mim ainda mais imensamente tocante, este "Roteiro da Viagem de João de Castro", a primeira representação da Ilha de Moçambique, bem como a sua imagem publicada por António Bocarro, a Ilha que tanto visitei, na qual tanto trabalhei, na qual tanto fui. Fiquei extasiado. Depois, o tal regresso…
Fica o texto do José Paulo Pinto Lobo sobre o meu "Torna-Viagem". E uma adenda, sobre o "reconhecimento" a que acima aludi:
Boa tarde
Foi uma honra ter sido convidado pelo José Teixeira para fazer a apresentação do seu livro “Torna-Viagem” nesta sessão em Évora. Mas é simultaneamente uma pesada responsabilidade. Espero que o tenha feito mais pelo facto de eu ser um contador de histórias e não por falta de alguém disponível que falasse bem dele e do que publicou.
Sendo essa a minha condição, a de narrador, poderão assim ficar descansados os presentes, porque não os maçarei com citações de escritores famosos, nem com divagações literárias. As crónicas constantes deste livro são relatos resultantes do olhar antropológico de alguém que enterrou as botas no matope e andou por montes e vales. Lá! como diriam os meus conterrâneos, expressando as lonjuras e as distâncias fora do conforto citadino. Não são libelos críticos nem artigos de opinião, ainda que aqui e ali possam ser pontilhados por desabafos algo cáusticos. São noventa e sete textos coligidos em duas partes: a primeira, “A Oeste do Canal”, dedicada Moçambique e a andanças por outros países e a segunda, “O Ocaso Boreal”, as aventuras de retornado a Portugal após dezoito anos de permanência no Índico. As suas deambulações levaram-no, peregrino, a calcorrear vários países, de Portugal ao cone sul de África, da Bélgica à ex-Jugoslávia. Esses relatos têm um tal nível de seriedade que só espero ser capaz de lhes fazer justiça nesta apresentação.
Alguém me disse que os livros só vivem dentro de nós quando estamos a escrevê-los. Mas depois que saem de nós e são publicados, estão gastos e mortos. Outros dirão que são fruto de vaidadezinhas pessoais, por considerarmos que temos importantíssimas mensagens a transmitir aos pobres mortais ou um relevante legado para os nossos descendentes.
Será assim?
Não é certamente o caso do “Torna-Viagem”. Este é um livro que vive na memória de quem o escreveu. É na prática a sua prova de vida. Vive também na memória e imaginação dos seus leitores. Transporta-nos para situações inusitadas e outras realidades. Vejam este excerto na pág. 53: “Na berma, coberto por uma capulana, jaz o cadáver ali velado por dois companheiros de viagem, o mais novo com uma mão lentamente dele afastando as inúmeras moscas sempre abutres. Paro, indago sobre o que se passou, de tão assustados que estão nem me conseguem explicar o acontecido, só lembram que o motorista, este ali prostrado, travou de súbito e que depois desabaram no pós‑curva. «Está morto?», pergunto‑lhes, e dizem‑me que não, apenas ferido na cabeça. Ao meu espanto, percebido, logo dizem «a capulana é para o proteger das moscas». E nisto sobreergue‑se ele, para mim qual Lázaro, e quase murmura um frágil, sumido, «estou a precisar de uma boleia», coisa óbvia, pois apresenta‑me um lanho gigantesco na fronte, antes semiescondido em trapos enrolados.”.
Tal como esta, as suas descrições são bem vívidas. Usem a imaginação e deleitem-se no Lago Niassa com o relato da décima segunda crónica, “O Silvo do Areal”. No meu caso, fez-me viajar para longínquas e saudosas paragens, revisitando lugares e amigos comuns e dando-me a conhecer locais e factos de um Moçambique num período em que estive ausente, bem como as vivências cruzadas do autor noutros países.
Entretanto, e fazendo jus à minha qualidade acima referida, não resisto a contar como conheci, ou melhor, como esbarrei no autor aqui em presença. Provavelmente, o JPT nem se recordará deste episódio. Foi há décadas em Maputo, no bar Chez Rangel. Para quem não conhece, este era um afamado bar de jazz sito na gare dos Caminhos de Ferro de Moçambique, na cidade de Maputo.
Eu e a minha esposa estávamos de férias nessa cidade e, convidados por um amigo, fomos visitar uma exposição de pintura numa das salas dessa gare. Só sabia do Teixeira por intermédio do seu blog, se não me engano, o ma-schamba. Reconheci-o de copo na mão no Chez Rangel e dirigi-me a ele para o cumprimentar.
– José Pinto Teixeira?1
Mau começo! O Teixeira afivelou aquela carranca de capitão Haddock que alguns de vós conhecem bem, e resmungou para este desconhecido que o interpelava:
– Não! Pimentel Teixeira!
– Desculpe! Pimentel Teixeira. Sou moçambicano e quis cumprimentá-lo pelo que escreve sobre Moçambique no seu blog. Gosto bastante dos seus textos.
E abalei para ir ter com os amigos, deixando o pobre Teixeira, que entretanto tinha balbuciado um espantado “Obrigado”, especado no meio da sala.
No entanto, na minha opinião, ele tem tanto de Haddock como de Corto Maltese. Discordando, ele considera-se mais um avatar, real, de Jimmy Mcclure, o amigo de Blueberry. Romântico, (apesar de ele resmungão recusar esse epíteto) é um eterno apreciador da beleza feminina, como se comprova na pág. 13. “Para trás ficou Quelimane, onde a beleza das mulheres até magoa. E nisso mostrando elas todo o bom que também surge da mistura das gentes, seja lá qual for a história disso, elas assim, apenas por serem, engalanadas de promessas agridoces.” ou na pág. 264. “E no suave gostar, terra de mulheres muito, mas mesmo muito bonitas, e ali em costume de saírem sozinhas, grupos de raparigas, muitas e belas. E de, entre os sorrisos, passarem a olhares aos quais não tens coragem de desviar os olhos.”.
Ousado, aventureiro, alguém que não leva desaforos para casa, como poderão constatar em pelo menos duas crónicas, a vigésima primeira e a trigésima segunda: «Now is the time»: Nelson Mandela” e «Um Símio em Calções».
Após este breve encontro, fomos trocando mails e textos e anos mais tarde, partilhando frequentes mensagens e conversas no WhatsApp, onde partilhávamos pontos de vista e verificámos que convergíamos em muitas opiniões, particularmente na análise da situação em Moçambique.
A segunda vez que estivemos juntos cara a cara foi hoje. É verdade! Admiram-se? É natural. Tantos anos em Portugal e nunca nos encontramos? Confesso que foi mais por falha minha do que por falta de insistência do José Teixeira.
Então, qual a razão deste convite? O que nos une para além da convergência de opiniões?
O amor por uma terra chamada Moçambique. Esse gostar que ele tão bem transpõe para as crónicas coligidas na primeira parte deste seu livro “Torna-Viagem”. Ele próprio refere que viveu “Num país atraente, então muito prometedor, com trabalhos exaltantes, entre gente magnífica.”. No sentido de que o que regista neste seu caderno de viagem, neste Diário de Bordo, se preferirem, são gratas memórias de um período da sua vida num país que o deliciou.
A sua escrita é cuidada, trabalhada, envolvente. Honesta, se assim se pode adjectivar a escrita. Poderão alguns criticá-lo - por ser prolixo, rebuscado, por vezes quase barroco. A mim diverte-me. E esse é o seu estilo, a sua forma veemente de transmitir o que viu e o que sentiu. Isso distingue-o de tantos outros.
Escrevi-lhe em tempos idos, o seguinte: “Gosto de livres pensadores como tu (mesmo que por vezes possa discordar do que escreves) e gostei de sobremaneira dos relatos e fotos das tuas deambulações por Moçambique e o carinho demonstrado pela minha terra (também um pouco tua) e pelas suas gentes. Acho que faz falta o confronto de ideias e uma visão diferente (distanciada?) de quem não esteve comprometido com a revolução ou com contra-revolução.”.
Algumas das suas crónicas marcaram-me profundamente, tal como certamente marcarão os moçambicanos da minha geração e das seguintes, assim como os demais leitores, exactamente porque portadoras dessa visão distanciada. As nossas conversas e os textos partilhados contribuíram de alguma forma para a minha catarse de um específico e desafiante momento histórico moçambicano, em que jovens iludidos perseguíamos utopias e julgávamos que todos os sonhos eram concretizáveis naquele período denominado de Iª República.
Por outro lado, certas histórias passadas no seu território pátrio comoveram-me. O desconforto na reintegração. O nostálgico regresso ao arrabalde, ao seu bairro, ao convívio com os velhos amigos, revelam um homem que tem orgulho em dizer que é dos Olivais. Atentem nestes excertos: “Quem cresceu nos Olivais sabe bem o que era a mistura de gentes, que era o que tinha a piada, foi o que retirámos do Salazar, que foi quem inventou o bairro, uma sopa de classes queria ele, a ver se melhorava o tempero, o dele claro está.” (pág.265), e “Agora, se volto ao bairro ainda encontro personagens dos velhos tempos, uma verdadeira arqueologia. Alguns regressaram, cerâmicas frágeis a colarem‑se os cacos. Outros nem tanto. Partilham‑se as mesas, algumas bebidas e, se afloradas as memórias, o saber de que sabiam de início.” (pág.269).
Fez-me recordar um ditado que suponho ser africano e que reza algo do género: “Um homem que não sabe de onde vem é como uma árvore sem raízes. À primeira ventania abate-se”. Assim poderei dizer que o José Pimentel Teixeira é como um embondeiro. Um homem de cultura e amizades perenes.
Do que hoje conheço dele sei que é portador de pelo menos três certezas: a do amor maior pela sua filha, de que ninguém lhe ditará o que pensar e escrever e, por último, da afeição à minha terra.
Puxando a brasa à minha magumba, relembrando os versos do poema Xicuembo, de Rui Nogar, um poeta moçambicano e excelente pessoa com quem privei e que, como tantos outros, amnesicamente esquecido em Moçambique, este “Torna-Viagem” é, na minha opinião, em parte, consequência desta afeição que tento expressar nestas estrofes, abusivamente por mim alteradas:
Eu bebeu suruma
do teu chão Moçambique
eu bebeu suruma
e ficou mesmo maluco
suruma do teu chão Moçambique
matou sossego no meu coração
oh matou sossego no meu coração
Leiam o livro, espantem-se, riam-se, comovam-se, deliciem-se. Como eu.
Muito obrigado pela vossa presença!
Évora, aos 12 de Abril de 2025
1 Aparte explicativo: Confusão com o apelido Pinto Teixeira de um conhecido engenheiro militar major do Exército Português, que foi Director dos Serviços dos Portos, Caminhos de Ferro e Transportes da Colónia de Moçambique, Secretário Provincial e presidente da Câmara Municipal de Lourenço Marques e fundador da DETA – Divisão de Exploração de Transportes Aéreos de Moçambique.
A tal minha adenda sobre “reconhecimento”:
Sobre o tal "reconhecimento": o meu "mano" Pedro Sá da Bandeira - cuja belíssima e significante exposição fotográfica sobre Moçambique está pronta, e a qual tem ("temos") de apresentar, se calhar até também em Évora - no sábado tirou-me esta fotografia. Não ando com um retrovisor para ver a minha cara. Mas sei que este (sor)riso não me é, assim deste modo, habitual. E é ele, este, o "reconhecimento" que se pode querer, que posso querer. Porque, ao contrário do que se disse, "navegar não é preciso, viver é preciso". Mesmo quando um tipo resmunga, e até nem lhe apetece fazê-lo: "navegar não é preciso, viver é preciso". Avante!
Obrigado a todos os que foram, e a todos os que não foram mas foi como se tivessem ido. E, muito obrigado, Zélia Parreira. Pois "g'anda dia"!
G'anda viagem, mesmo que a não mais de 200 quilómetros. E g'anda pena não ter eu ido, qua as migas de espargos com carne de alguidar apalatam bem com a memória ainda fresca do 'torna-viagem'. Numa próxima, num Alcácer ou numa chanfana aqui mais perto.