A lembrar o Zé Cabral
(Zé Cabral e António Cabrita no "CEB" no lançamento de "Leona, a Filha do Silêncio" e de "Wati", dois livros da bela colecção de literatura infantil que a Escola Portuguesa publica, 24.11.2011).
O António Cabrita acaba de deixar no seu mural de Facebook um bonito texto-memória sobre o Zé Cabral e assim eu recupero esta fotografia dos dois - que tenho afixada num velho álbum "Livro de Caras" na minha conta de Facebook, e o qual confesso já não visitar muito, pois pejado que está de amigos que entretanto já não estão...
Eu conheci o Cabral logo que me aboletei em Maputo, em 1997, julgo que até na inauguração do centro cultural português. E depois nos convívios, mais ou menos alargados, entre a Polana e o Bairro Central. O entre-nós aligeirou-se pouco depois. Sim, assim mesmo, pois o Cabral tinha uma característica - comum a alguns de nós, mas nele ainda mais vulcânica: às tantas dava-lhe o "clic" e desatinava "largo...".
E aligeirou-se porque um dia, meses depois de nos conhecermos, o tipo apareceu-me à porta do gabinete, a ver se eu "dava uma entrevista" a um jornalista português ali em reportagem, e que o contratara como fotógrafo. O homem, Francisco Camacho - um biltre, mostrou-o depois, no texto -, ia lá fazer mais uma daquelas "o regresso dos portugueses" que faziam furor na pobre imprensa portuguesa... O Cabral dissera-lhe que eu andara pelo "mato" e isso, se calhar seria interessante ouvir-me. Eu, à defesa mas cândido, e como era ele a pedir disse que para entrevista não, mas para um "briefing" estava disponível - ou seja, nem gravações nem ... fotografias.
O tipo lá avançou, inquirindo sobre as maldades da "comunidade portuguesa". Eu puxei o lustro às minhas luzes antropossociológicas e fui explicando ser isso inexistente, pois os núcleos de portugueses residentes não eram "comunidade", muito diversos, em termos etários, socioprofissionais, até ideológicos. De pouco (me) serviu, na semana seguinte alguém passou pela Mabuko, comprou a Grande Reportagem e telefonou-me num "já leste a reportagem daquele Camacho?". Pois lá estava o meu nome, posto, dois pontos, aspas e "a comunidade portuguesa é estúpida, racista e ignorante". Caí do estrado! E fui ter com o meu chefe, mostrando-lhe e dizendo-lhe "isto não é verdade mas assim não tenho mais condições para exercer, demito-me". Ao que, exaltadíssimo, respondeu ele - que era um Senhor - "nem pensar nisso, ninguém lê essa merda!", "mas não falas mais com jornalistas!". E eu, atrapalhado, "mas eu tenho de falar com jornalistas, faz parte do trabalho". "Sim, mas não com portugueses, são todos iguais, todos uns fdp's" (por extenso) - e isto não foi só comigo, outros dois patrícios - essas na "privada" - haviam sido vilipendiados, num despautério completo do tal biltre, e até de modo pior, e telefonaram para Lisboa a pôr os lugares à disposição.
Claro que logo depois telefonei ao Cabral, irado: "não tenho culpa", claro que não tinha, "o gajo só me contratou para fotografar"... "Não me tragas mais destes gajos...", resmungava eu, ali ao telefone... "E avisa o teu amigo...", "não é meu amigo" defendia-se, compungido, "avisa o teu amigo que se aparece em Maputo eu o espanco"... e não estaria sozinho nisso. Passados uns anos o homem foi ao Norte - até escreveu um southern meio-estúpido que aqui foi louvado -, soube-se por lá, "então, o teu amigo anda por cá?", provocava-o. "Foi pela Beira", dizia ele, "para evitar cenas...".
Enfim, então por isso, essa espécie de "dívida", o Cabral nem sempre desatinava comigo. E mesmo quando desatinava a gente sabia que ele era, para além de bom fotógrafo, uma jóia de tipo. Ou pelo menos deveria saber. Confesso que me fez perder a cabeça. Uma vez. No dia seguinte lá fui procurá-lo, pedir-lhe desculpas. Acabámos a petiscar, a rir. A fingirmos que nada acontecera. Pois, fosse como fosse, era o "Cabral". E isso bastava.