A "dobradinha"
"Alguns acham que o futebol é uma questão de vida ou morte. Posso assegurar que é muito mais importante do que isso.", tão acertadamente disse Bill Shankly, a lenda de Liverpool. Pois é a porta para a alegria, esse bem ultra-precioso, tão ambicionado e ainda mais escasso - por isso entre alguns, mais desesperados, provocando tanto azedume e violência na sua demanda.
Alienação? Está a vida a correr-te bem? Bom emprego, melhor salário, saúde vigorosa, amigos imunes a cancros e quejandos, mulher amada e amante a teu lado, viçosos filhos querendo-te e ladeando-te, poupanças para a velhice, vizinhança respeitando-te? Que se foda tudo isso, o inalcançável, o desperdiçado… Pois o Sporting (no meu caso) é bicampeão - 71 anos depois, inédito para mim!E ganha a “dobradinha”, 23 anos depois, no dia em que há exactamente 23 anos fui pai, a única Taça e Medalha que conquistei.
Sportinguistas, sei lá porquê, somos unos. Mas não sós. A meu lado a minha querida, que se me exigiu platónica e assim minha madrinha, portista. Do outro lado a querida do meu “mano”, sei lá de que clube mas exultando com a felicidade que o recobre. Pois somos bi-campeões, e cantamo-lo. Eu venho dos régulos de Maçãs de Dona Maria, no centro, disso tenho escudo. E dos régulos de Mogadouro, mais gentes de Lamego, Gimonde e alhures. Abraço-me a um tipo que nunca vira, nunca mais verei, cujos antepassados vieram de outras paragens, tem menos de metade da minha idade, mas é tal e qual eu - e a fotografia do meu benfiquista compadre, também ele, porque homem como “deve de ser”, feliz pela felicidade alheia, mostra-me nisso ali estreitado como nunca me vira… É isso a bola, comunhão.
Ontem, no mesmo sítio, fizemos a “dobradinha”. Eu desistira, derrota assumida, fiz que saíssemos da “bancada” televisiva, carregando os bancos que leváramos. “Penalti” gritou-se nós já de costas voltadas e lá voltámos, ao nosso redor os concidadãos sportinguistas e benfiquistas rindo-se da mezinha ou malapata que a nossa retirada provocara…
Depois dali saímos, “dobrões”, à Graça, frenéticos, para jantar no restaurante do Amir onde não ia desde antes do Covid, quando por ali tanto cirandava aquando do meu último vestígio de felicidade - “amor” transfiguram-na. Boas chamuças, bons caris, boa bebinca. Honesto Papa-Figos em demasia. A Graça agora parece o Algarve, turismo sem mais… Cutucamos um bar ou outro, como se fossemos jovens quarentões. À saída, rumo ao táxi (“escreve postais com quatro parágrafos, não mais, senão ninguém te lê”, dizia um dos meus parceiros, enquanto lhe somava “eu não ando de UBER, sempre de táxi”, coisa política…), na quase madrugada um músico de rua pede-nos dinheiro. Toca guitarra com três cordas, o Edgar atira-se para o chão, filma-o e instragama-o, Juan Pardo, colombiano (quem me dera voltar à Colômbia, país magnífico, complexo, tão diverso, e terra do ácido Vallejo), encanta-nos com o seu espírito cantado, digo-lhe “pá, o gajo que te filma é o melhor realizador português”, ele sorri mas não acredita.
Seguimos ao B. Leza, talvez a Sofia lá esteja, mas o porteiro não nos deixa entrar, pois “está a fechar”. Avançamos ao Cais do Sodré, eu sempre orlado do cachecol, “dobrão” ufano. À porta da fervilhante “Pensão do Amor” - à qual só fora há mais de 10 anos - o porteiro, quarentão, diz-me que tenho de o tirar, julgo que esteja ele a brincar, benfiquista irónico… Mas não, é mesmo para evitar violências, reacções agressivas. Fico estupefacto. Lá dentro bebericamos. Na varanda esplanada dois jovens pedem-me mortalhas, sob sotaque francês. Falamos, dizem-se “marroquinos”. Mas afinal “franceses”. Estudantes na Nova da Costa da Caparica, pois esses cursos universitários são “baratos” e “fáceis”. Simpáticos. Uma beldade loura vem-lhes pedir tabaco e eles dizem não ter… Surpreendo-me com a recusa. E eles explicam, é uma francesa, colega deles mas na universidade não fala com eles, arrivista para não dizer pior. Rio-me, “nous sommes fréres” digo-lhes, pois exactamente tal e qual… Avançam que adoram este nosso país. E gostam dos cursos. “Fáceis?”, indago, curioso. Sim, e explicam. “Portugal - este de quem tanto gostam - é como 2005!”. “Vous êtes trés gentils” rio-me ainda mais. “Falas muito bem francês!”, sorriem.
A manhã já aí vem mas avançamos para mais um bar, desses do tempo do Jamaica e Tokyo. À porta a mesma coisa, o pedido para guardar o cachecol de “dobrão”, não vá o diabo holigânico tecê-las. As mulheres, catraias vintonas e trintonas, estão todas tatuadas, pernas, costas, braços, um asco. “Acontece nas melhores famílias” digo-me, porque o sei… Esfumaço cá fora, um marroquino, um costa-riquenho recém-chegado mas sem perceber onde está, uma russa jovem mas aqui veterana, olhar agreste de mariola a perceber ser-se percebida, moles de trabalhadores nepaleses em excursão guiada à noite lisboeta. Por todo o lado vendedores ambulantes de tabaco, outros carregando tupperwares com chamuças e outras frituras, julgo que estou em Maputo… Um tipo da Guiné vende-nos minis Sagres a 1 euro cada, eu indigno-me, o gajo ali às 4 da manhã a vender cerveja àquele preço e os sacanas tasqueiros no dia-a-dia a vendê-las tão mais caras, ele mesmo um pobre explorado… Um outro gajo de uma qualquer Guiné abalroa-nos em torno do “Sporting” e somos simpáticos. Ele não desgruda, sou eu que o sacudo, retornado a veterano da noite, essa na qual “não se pode ser simpático”. Uma “Carla Vanessa” ou coisa assim, quarentinha benfiquista, sorri-me com fair-play e denga-se com os meus elogios à exibição do seu SLB e ainda mais com a minha constatação da injustiça - relativa, entenda-se - do nosso triunfo.
Apanhamos o táxi, de regresso às nossas casas. Venho feliz, com esta dobradinha. Neste 1995.